O Martelo contra as bruxas


Publicado em 1486, o livro Malleus Malleficarum, escrito pelos inquisidores alemães James Sprenger e Heinrich Kramer, era um manual sinistro de como localizar, identificar e punir bruxas ou qualquer outro ser humano que, segundo os dogmas católicos, era um adorador do demônio e/ou herege.

O livro — que foi traduzido para o português como “Martelo das Feiticeiras” ou “Martelo das Bruxas” — também trazia em suas páginas explicações sobre os efeitos de feitiços e os motivos pelos quais, desde Eva, a mulher era considerada uma ameaça constante às almas puras.

Mais do que um livro que dava um certo apoio teórico à Santa Inquisição, o Malleus é um marco na transição entre a Idade Média e a Modernidade, em uma Europa marcada por guerras, peste, fome, fogueiras e, porque não, temor.

Mas vamos falar um pouco sobre as bruxas, normalmente culpadas por todos os males que assolavam a Europa.


Igreja versus Mitos antigos = paganismo

Já na Antiguidade havia o mito romano de Diana, deusa dos bosques e das matas, que costumava fazer cavalgadas celestes na companhia de amazonas. Entre os povos germânicos, figuras ameaçadoras, conhecidas como streghes, tinham o hábito de, no meio das florestas, fazer reuniões em torno de caldeirões para realizar seus rituais. Depois invadiam as casas para sugar a energia vital das crianças.

Quando o Império Romano foi catequizado, os mitos antigos foram assimilados ou deixados de lado pelos ritos da Igreja Católica.

E quando o Império sucumbiu às invasões bárbaras, novos costumes, crenças e ritos, estranhos ao costume católico já vigente, assustavam e tinham que ser combatidos. Adorar a natureza e reverenciar deuses antigos ao invés de santos era uma afronta à Igreja e um desvio da alma.

A verdade é que com a descoberta de novos territórios e povos naquela Europa “fechada”, o que era apenas crença passou a atiçar cada vez mais o imaginário popular e a Igreja era a principal combatente deste “mal”.

Resumindo: o que a Igreja Católica não assimilou, ela tratou como obra do demônio, como bruxaria. E o termo “pagão” servia para designar tudo que era contrário ao cristianismo. Até hoje este termo é usado desta forma, mas na Europa medieval ser pagão era ir contra a maioria da população que acreditava que sua falta nos ritos cristãos era, obrigatoriamente, sua presença em rituais demoníacos.

E o que fazemos contra o que achamos perigoso? Atacamos, antes que nos ataquem. E com as bruxas não foi diferente. Na Idade Média existia o temor de que o demônio um dia iria dominar o mundo, e seus servos — a maioria mulheres — deveriam ser combatidos de qualquer forma. Nuas, sentadas em vassouras, as bruxas espalhavam o terror pelos vilarejos, cidades e castelos, cumprindo os mandos do demônio.

Queimem as bruxas!

Mas de onde veio este temor contra as mulheres na Idade Média? Logo elas que na Antiguidade eram consideradas sagradas, pois traziam vida ao mundo! Talvez um versículo do Eclesiástico [25:26] possa ajudar:

“Toda malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher.”


A ideia de que a mulher perverteu a humanidade não é exclusividade da época da caça às bruxas, iniciada lá pelos séculos XIII e XIV. Ela tem sua raiz no cristianismo de Pedro e nas primeiras grandes reuniões de bispos católicos, os famosos Concílios, que determinavam os rumos do pensamento católico. As ideias que saíam daquelas reuniões ditavam as crônicas e textos da época, como escreveu Quinto Tertuliano, escritor cartaginês que viveu entre 160 e 225:

“Tu deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos e mergulhada na penitência, a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero humano. (…) Mulher, tu és a porta do Diabo.”


Tertuliano teve lá suas rusgas com os católicos e deixou a instituição de lado ao longo da vida, mas é interessante citar que ele nasceu de pais pagãos — ou, pelo menos, não-adeptos do catolicismo.

A ideia de que a mulher era fraca e, portanto, atendia ao chamado do mal com facilidade, não interfere só no que diz respeito à bruxaria. Vocês com certeza já ouviram falar do cinto de castidade? Ele nada mais era do que um modo do marido proteger a honra de sua mulher — e do marido, lógico! — , ou de um pai proteger a virgindade de sua filha. Para o homem medieval, a mulher estava em constante pecado, conforme escreveu Bernard de Morlas, monge de Cluny, lá pelo séc. XII:

“Toda mulher se regozija de pensar no pecado e de vivê-lo.”


E como funcionavam os temidos Tribunais de Inquisição, para salvar o mundo do pecado? Como era feito todo o processo de caça às bruxas?


Delação, tortura, confissão e fogueira

Normalmente o processo de caça começava com uma delação. Alguém entregava uma vizinha ou uma pessoa que vivia próxima e que muita das vezes sabia usar ervas para cura ou então era uma parteira. Enfim, qualquer pessoa podia ser acusada de bruxaria.

Uma observação rápida: parteiras eram muito visadas, pois as bruxas eram acusadas de roubar crianças recém-nascidas e ainda não batizadas para seus rituais macabros.

Quando capturada, essa pessoa passava por um interrogatório. A recusa em dizer “a verdade” levava a acusada à tortura. Desta forma, até quem não era ligada aos ritos pagãos confessava que era bruxa!

Se mesmo com a tortura a pessoa não admitisse suas bruxarias, o ato era visto pelos inquisidores como uma prova de que a pessoa tinha realmente pacto com o demônio, pois aguentava a dor da tortura sem se entregar.

Desnecessário comentar o absurdo desse raciocínio, não é mesmo? Mas desta forma, após a "confissão", só restava ao tribunal lavrar a sentença, que normalmente era a fogueira. E dependendo da sentença a pessoa tinha seu pescoço quebrado antes da fogueira ser acesa. Mas na maioria das vezes a condenada era queimada viva.


Talvez o maior absurdo de todos — pelo menos é o mais famoso — aconteceu com Joana D’Arc em 1431, acusada de herege e queimada pela Inquisição após ajudar seus compatriotas franceses na luta durante a Guerra dos Cem Anos, contra os ingleses.

Está certo que Joana D’Arc foi capturada pelos bourguignons, aliados dos ingleses, mas o fato dela ter sido considerada uma herege, julgada por um bispo e queimada viva — durante uma guerra — demonstra que qualquer pessoa estava sujeita à condenação por bruxaria.

Estima-se que durante os três séculos em que o Tribunal da Inquisição atuou de forma enérgica na Europa foram abertos cerca de 100 mil processos contra pessoas consideradas hereges.

Galileu, por exemplo, foi julgado pela Inquisição, mas saiu vivo do processo porque desmentiu suas teorias — pelo menos na frente do tribunal — , mas cerca de 60 mil pessoas não tiveram a mesma “sorte” de Galileu e perderam a vida nas fogueiras, acusadas de bruxaria.

Fontes

- Todas as citações foram retiradas da revista Superinteressante, edição de fevereiro de 1993.

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