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O Sagrado Feminino através da História



Este texto foi publicado pela primeira vez em 2010, no antigo HZ. Alterações foram evitadas ao máximo durante a revisão, mas uma ou outra frase teve que ser alterada ou inserida, apenas para melhorar o contexto, tentar clarear um pouco mais a linha de raciocínio ou simplesmente atualizar a fala.

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O texto foi motivado por uma pergunta da amiga Dolphin e é, como diz o título, sobre o Sagrado Feminino. Na verdade, nós dois começamos a “brincar” de fazer perguntas um para o outro no antigo Formspring, mas como o site limitou o número de caracteres tanto para perguntas como para respostas, pedi que ela fizesse a pergunta pelo também antigo formulário de contato do site, e aí está. Como a pergunta ficou um pouco extensa, vou colocando trechos da mesma e fazendo minhas observações-respostas, ok?

Vamos lá:

O mito de criação comum a judeus e cristãos nos conta que Jeová-Deus criou o primeiro homem, Adão e de uma costela sua moldou a primeira mulher a quem chamou de Eva. Pelo pecado original, o de ter comido do fruto da Árvore do Conhecimento, Eva e todas as mulheres posteriores a ela deveriam pagar por sua insubordinação.

Hoje já se sabe que esse mito é posterior, pois em Gêneses 1:27 temos a intrigante passagem: “E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.”. Por essa frase temos o registro — mesmo que posteriormente sendo ocultada do mito da criação — da presença de Lilith, essa sim a primeira mulher criada por Jeová-Deus, não de uma costela, mas sim do mesmo barro que Adão.


Ah, a Bíblia e seus trechos dotados de dupla interpretação e suas diversas contradições! O que seria dos escritores Dan Brown e Erich von Däniken sem estes textos dúbios e controversos? Eles nunca teriam escrito suas estórias envolventes questionando o passado bíblico e, por que não, sua fé nas escrituras sagradas. A própria Dolphin pegou uma passagem contraditória e iniciou sua argumentação por ali.

E ela fez certo, pois a Bíblia, enquanto fonte histórica, não pode ser levada em consideração como “A” verdade absoluta — é, eu sei, tem a tua fé e tals, mas aqui a gente está falando de História, ok? — O próprio mito da criação foi por terra graças ao trabalho de um certo senhor Charles Darwin, mas como nós estamos falando em Sagrado Feminino (SF), temos que olhar as escrituras sagradas para entender o porquê da ocultação do SF.

Lilith ou Eva? Uma, outra ou as duas juntas?

As duas. Lilith, segundo as escrituras — no trecho citado pela Dolphin — teria sido criada ao mesmo tempo que Adão.

Isso nos dá uma ideia de igualdade entre os sexos, concordam?

Não é aquele pensamento de criar primeiro o homem e depois, a partir de uma costela do homem, criar a mulher. São duas ideias diferentes e o relato que coloca Eva criada depois de Adão também leva a crer na submissão da mulher, pois se não fosse a costela masculina, não existiria a mulher.

Lilith é muito conhecida na tradição judaica — nada mais justo, já que o Antigo Testamento e a Torah são textos quase idênticos — e segundo a tradição, ela não submeteu-se à dominação masculina, fugindo do Paraíso [fonte].

Mas até aí tudo bem, afinal, quem nunca foi embora de um lugar onde não se sentia bem? O problema é que após a fuga, Lilith foi transformada em um demônio e sua existência foi usada para justificar as poluções noturnas masculinas e a mortalidade infantil. Depois procurem ler o texto linkado como fonte logo ali acima, e vocês entenderão melhor. Mas vamos voltar à pergunta da Dolphin:

A corrente mais aceita diz que Lilith foi varrida do Antigo Testamento pelos patriarcas por sua presença forte que não deixava dúvidas de que seu papel na Criação era tão importante quanto ao de seu consorte. Lilith-Fêmea é sem sombra de dúvidas uma das representações mais antigas do Sagrado Feminino e que mesmo sofrendo a censura dos escribas hebreus conseguiu sobreviver a tradição escrita e oral na forma de um íncubus, um demônio feminino.

O Patriarcado nos legou a imagem da mulher como o mal que sempre espreita; Lilith e Eva são os dois lados de uma moeda, juntas representam o Sagrado Feminino perseguido e subjugado. Enquanto uma assume inteiramente o papel de um demônio, a outra tornou-se o mal por ter levado o homem a pecar. Em todas as mulheres reside metade Lilith, metade Eva.


É bom destacar que grande parte desta ideia de "maldade feminina" foi criada e alimentada na Idade Média européia pela Igreja Católica. A mesma Igreja que cultuava a Virgem em diversos lugares espalhados pela Europa. Todas eram representações de Maria, mãe de Jesus.

Mas no imaginário popular fica a ideia de que são várias “santas”. Estranho o cristianismo ter uma base patriarcal e várias representações femininas de fé… mesmo que na verdade seja apenas uma mulher, Maria.

Tanto os patriarcas citados pela Dolphin, quanto os primeiros compiladores da Bíblia que nós conhecemos hoje tentaram, sem sucesso, reverter uma adoração bem anterior ao mito da criação. Talvez — vejam só: TALVEZ, não estou afirmando — a adoração às várias “Marias” tenham sido uma forma, mesmo que vinda de um suposto inconsciente coletivo, de burlar a falta de representatividade feminina.

Na Pré-História o Sagrado Feminino tomou forma

A imagem ao lado é a famosa Vênus de Willendorf.

Esta pequena estatueta de 11 centímetros foi encontrada em 1908 na Áustria e data do Paleolítico Superior. Estima-se que ela tenha sido esculpida entre 24.000 e 22.000 anos atrás.

Reparem nas formas da pequena estátua. Seios fartos e ventre flácido. É uma clara representação de fertilidade. O homem pré-histórico valorizava sobremaneira a fertilidade feminina. A mulher era sagrada, pois trazia a vida em seu ventre.

Não havia ainda a noção de que o ato sexual produzia crianças, então todo nascimento era cercado de uma aura mística.

Por este motivo a mulher sempre foi considerada sagrada na Pré-História. Eu sinceramente não entendo as motivações de alguns dos nossos antepassados para diminuir o papel e a importância da mulher, ainda mais sabendo que em outras culturas a mulher continuava respeitada — a civilização cretense é o maior exemplo deste respeito. Mas não cabe o julgamento neste momento, até porque temos que continuar com a pergunta da Dolphin:

A minha pergunta é: Mesmo não sendo aceito e pior, sendo perseguido ao longo das eras, o conceito do Sagrado Feminino resistiu ao tempo e chegou aos dias de hoje. Ao olhar o curso da História como um observador atento, você considera que o papel das mulheres — mesmo que não celebrado, ao contrário, sendo continuamente ocultado — foi significativo para delinear e moldar o mundo como conhecemos? Se sim, exemplifique com personalidades ou situações que corroborem sua afirmativa.


Bom, como aqui foi solicitada diretamente a minha opinião, eu acho que sim, o papel da mulher foi importante onde ele foi valorizado, e também onde ele foi ocultado. A frase ficou esquisita? Vou explicar melhor:

De uma forma generalizada, a submissão feminina leva ao domínio masculino. Domínio de ideias, pensamentos, comandos. Com o tempo, a vontade e a opinião feminina ficaram em segundo plano. A mulher passa a não ser ouvida, e passa a aceitar passivamente — ou não consegue lutar — pelo seu direito de igualdade.

Parte desta culpa tem uma base teológica: as três maiores religiões monoteístas — catolicismo, judaísmo e o islamismo — pregavam a submissão da mulher, cada qual do seu jeito. Uns mais, outros menos, mas a mulher sempre foi tratada de forma submissa.

Um mundo masculinizado é um mundo mais prático e direto. Diplomacia para que, se podemos guerrear? Aos que culpam o homem pela ganância, nada mais justo, pois tudo que o homem fez foi tentar acumular o máximo de riquezas possíveis com o passar dos séculos. E se terras significam riquezas, vamos a elas, mesmo que além-mar.

Mas é fácil falar da passividade feminina e culpar a religião. Difícil mesmo é ser Joana D’Arc, liderar os franceses contra os ingleses e depois da vitória ser considerada uma bruxa e morrer queimada por isso.

Na Idade Média devia ser complicado ver seu marido ir embora atrás de uma campanha militar pelos locais sagrados do cristianismo, ter entre suas pernas um cinto de castidade e mesmo assim ser tratada como uma prostituta apenas pelo fato de olhar para algum homem.

As religiões que valorizam a mulher — podemos citar a Wicca — foram e ainda são consideradas pagãs. A mulher que segue esta religião é considerada uma bruxa, enquanto o homem, no máximo, pode receber o título de alquimista, ou mago. A própria definição na cabeça das pessoas coloca a palavra “bruxa” como algo voltado para o mal, enquanto em nosso costume o “mago” costuma ser bom.

Guinevere foi culpada de trair o Rei Arthur com Lancelot em alguma releitura da lenda bretã; outra releitura a coloca como uma bruxa que enfeitiçou o rei e tirou vantagem disso, mas ninguém fala mal de Merlin, Avallon e suas bruxarias… ops… magias.

Guinevere e Lancelot.

Para alguns, Helena é a culpada pela guerra de Tróia. Assim como nas lendas de Arthur, sempre usaram — e usam até hoje — a imagem da mulher para justificar os erros dos homens. Sempre foi assim, desde a mordida da maçã no paraíso!

E quando temos uma mulher no comando da maior potência do planeta em uma época que ficou marcada com seu nome, culpam a rainha Vitória de ter sido ultra-conservadora com os costumes e de ter vivido em luto eterno e jamais cuidar da política e dos deveres públicos após a morte de seu marido — e diga-se de passagem, os dois contraíram o matrimônio por amor, não por conveniências da coroa britânica.

Dei apenas alguns poucos exemplos, mas dá para ter uma noção da importância da mulher na História. Ela está ali, mas sempre alguém a omite. E quando não consegue omitir, as descrevem com falhas.

Não sei se estou sendo óbvio demais, ou confuso em minhas colocações. Espero que quem venha a ler este texto entenda-o. Como eu comentei com a Dolphin na época em que ela fez a pergunta, o tema proposto por ela é muito amplo. E complexo! Não é fácil falar sobre o Sagrado Feminino e ficar em apenas alguns exemplos, mas o texto também não pode ficar muito extenso.

Prometo que volto ao assunto em outros textos, até mesmo porque não dá para apagar a mulher da História. Como eu disse, ela está lá, cabe a nós estudar sua participação sem os grilhões de qualquer opinião alheia, seja ela religiosa ou provida de qualquer outra ideologia que embace o entendimento.

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