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Além de Asterix e Obelix


Eles ficaram famosos nas histórias em quadrinhos que contam a resistência de uma de suas tribos frente à dominação romana, mas na verdade os gauleses são muito mais do que bárbaros que bebiam poções mágicas para descer o sarrafo nas legiões romanas.

Herdeiros dos celtas

Os gauleses são considerados pelos historiadores como um dos povos celtas originários de diversos agrupamentos humanos espalhados pelo continente europeu.

Eles começaram a se definir como um povo comum a partir do desenvolvimento de pequenas tribos que cresceram na região onde hoje estão localizadas França, Bélgica e o norte da Itália, por volta dos séculos VIII e VII a.C.

Estas tribos viviam em constantes disputas, o que não os impedia de partilhar certos costumes, tradições e crenças, por isto nós consideramos que existiu UM povo gaulês, mesmo que cada tribo tivesse sua soberania — que era respeitada ou não, de acordo com os arranjos políticos e as disputas entre as tribos.

Os gauleses, assim como a maioria dos povos bárbaros — de acordo com a definição romana de povo bárbaro, que fique claro — eram politeístas e adoravam elementos da natureza, além, é claro, de realizar a maioria de suas celebrações em altares nas florestas, em contraste com outros povos da antiguidade que já construíam grandes templos religiosos.

Os sacerdotes responsáveis pelas celebrações eram os famosos druidas, que também acumulavam as tarefas de aconselhamento, ensino, medicação dos enfermos e resolução das disputas internas, fazendo o papel de juízes.

Semi-nômades, os gauleses pouco plantavam, se preocupando mais em criar animais para produção de leite e queijo, além de dedicarem-se à caça de animais de pequeno e médio porte.

Já tinham o conhecimento necessário para fundir o ferro, o estanho e o bronze, e com isto fabricavam espadas e utensílios domésticos, além de jóias, moedas e estátuas.

Quando o general Julio César — aquele mesmo que viria a ser ditador em Roma anos mais tarde — invadiu a Gália em abril de 58 a.C. para subjugar as tribos que ainda não estavam romanizadas, encontrou uma sociedade estruturada e organizada dentro de grandes agrupamentos que nós já poderíamos considerar como cidades gaulesas, mas carente de união política, o que foi decisivo para a conquista.

"Dividir para conquistar"

Este era um dos lemas das legiões romanas. Na Gália, César encontrou o ambiente ideal para conquistar, além de mais territórios para Roma, o apoio e a simpatia do Senado e da população para seus intentos futuros na política romana.

Considerados bárbaros, os povos que viviam além das fronteiras romanas tinham que ser vencidos em nome da segurança da República, além do aumento da riqueza e do número de escravos, indispensáveis em um sistema econômico sustentado na servidão.

Como os gauleses viviam em constantes rixas entre as tribos, dificilmente um clã ajudava o outro quando este era desafiado. Fácil vencer, não?

Em tese seria fácil, e as legiões em pouco tempo conseguiram dominar quase todas as tribos, tanto que em 52 a.C. os romanos já consideravam a região conquistada; por isso César voltou para Roma. Mas esqueceram de avisar para um líder gaulês que eles deveriam entregar os pontos para Roma como quem desiste da vida.

Houve luta e os gauleses venderam caro a derrota.

Vercingetorix e a inédita união gaulesa

Quando César foi para Gália, a parte sul da região já estava sob controle romano há um tempo, e era chamada de Gália Narbonense. Mas a região ao norte, só conquistada sob as ordens de César, era conhecida como Gália Comata.

Nesta região viviam os avernos, os heudos e os belgas, todos povos gauleses. Vercingetorix era um averno, e foi o único líder que conseguiu unir as três grandes tribos da região para questionar a liderança romana.

Como os gauleses tinham pouquíssimas chances de vencer o exército mais poderoso do mundo em um confronto direto, eles adotaram a tática de terra arrasada: queimaram vilas e povoados rumo ao norte da região, recolhendo mantimentos e deixando os romanos sem ter o que comer, a não ser as próprias provisões trazidas pelas legiões.

Só que os habitantes de Avaricum se recusaram a destruir a cidade, que era razoavelmente fortificada, além de ter o reforço defensivo de um rio e um pântano em volta do terreno. Ali eles resistiram aos romanos por 27 dias. No fim, dos 40 mil habitantes de Avaricum, somente 800 foram poupados. Foi uma carnificina, mas a história de resistência gaulesa aos romanos não lembra um certo desenho? Pois é, Asterix e suas aventuras foram inspiradas justamente neste episódio das guerras gálicas.

Apesar da vitória aumentar a moral dos exércitos romanos, Vercingetorix teve tempo para organizar um contingente de 80 mil homens e 9 mil cavaleiros em Alésia, e todos se prepararam para resistir aos romanos, além de atacá-los.

Só que César não é considerado um dos maiores generais da História à toa. Ele ordenou que as tropas cavassem quilométricas trincheiras em toda a região em volta do monte Auxois, onde estavam reunidos os gauleses. Em pouco tempo eles estavam cercados por centenas de armadilhas e soldados romanos espalhados por toda a região.

Vercingetorix ordenou que seus cavaleiros buscassem reforços por toda a Gália, e César deixou os cavalos partirem. Quando os reforços chegaram, foram esmagados pelos 55 mil romanos que já esperavam os inimigos.

Vercingetorix nada pode fazer e decidiu se entregar no outro dia após a derrota dos “reforços” gauleses.

“Vercingetorix se rende a César”, quadro de Lionel Royer.

A Gália estava definitivamente subordinada a Roma. E César, três anos depois, resolveu atravessar o rio Rubicão e enfrentar Pompeu… mas isto é outra História e você pode ler parte dela em nosso texto sobre o Império Romano.

Os gauleses deixaram de lado parte de seus costumes, mesclando com os costumes e rituais romanos. Os arqueólogos já encontraram templos religiosos, além de construções mais elaboradas nas regiões onde eles viviam, e que estão datados da década de 40 a.C. em diante.

Óbvio que não cabe a nós julgar se a romanização dos gauleses foi boa para a cultura. Em parte foi péssimo, pela pura e simples perda cultural existente em processos como estes, mas convenhamos: era difícil manter uma cultura intacta vivendo muito próximo dos grandes impérios da Antiguidade. Uma hora você teria suas terras, posses, seu país invadido… e aí a aculturação era inevitável. Mas pelo menos os gauleses lutaram…

Para saber mais:

- Exposição revela que gauleses não se pareciam com 'Asterix'

- Siege of Avaricum, 52 BC. O texto está em inglês, mas hoje o Google Chrome já traduz automaticamente.

Todos os links foram verificados em 27/02/2020.

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