A Cabanagem


Esta revolta do período regencial foi a única entre todas em que membros das camadas populares tomaram e mantiveram por um tempo o poder na província. Mas o caráter popular da Cabanagem não foi, por exemplo, semelhante à Revolta dos Malês, onde escravos de Salvador se rebelaram contra o Império.

A Cabanagem tem raízes na Independência do Brasil e é a partir deste capítulo da nossa História que nós vamos iniciar nosso raciocínio.

Grão-Pará contra os reacionários monarquistas

A província do Grão-Pará englobava regiões dos atuais estados do Pará, Amazonas, Amapá e Roraima. Quando D. Pedro proclamou a independência em 1822, a província tinha muitas pessoas que eram favoráveis à manutenção da região como colônia de Portugal.

Quem garantiu que a região fizesse parte do Brasil, então país recém-nascido, foi a população da província, auxiliada por parte da elite local que era favorável à independência.

Mas a vitória não veio sem luta. A região vivia do extrativismo e do cultivo das culturas de cacau, tabaco, algodão e arroz. E os habitantes que simpatizavam com a questão colonial, apoiados pelos ingleses, não desejavam que a Metrópole perdesse esta mamata comercial, daí as lutas.

O grande problema é que estas pessoas que lideraram a luta contra os reacionários portugueses, em especial os irmãos Vinagre — Manuel, Francisco Pedro e Antônio — , o jornalista João Batista Campos, o seringueiro Eduardo Angelim e o fazendeiro Félix Malcher ficaram de fora do poder quando os combates acabaram e o governo regencial tomou de volta as rédeas da província.

Esperava-se, pelo menos na província, que estas e outras pessoas recebessem o devido reconhecimento do Império e ocupassem lugar de destaque no controle do Grão-Pará, até mesmo por conhecerem melhor as necessidades da região e contarem com a simpatia de parte da população, que auxiliou na luta contra os reacionários.

Mas uma vez fora das principais decisões político-administrativas da província, a elite local passou a fazer vista grossa para a revolta da população, que estava inflamada pelas dificuldades sócio-econômicas que já existiam na região e que não foram sanadas nos primeiros anos do Império.

É interessante citar que todo o Grão-Pará contava, na época, com cerca de 90 mil habitantes. Pelo menos metade da população era formada por negros — maioria escravos ou fugitivos — e também mestiços ou nativos tapuios, ou seja, nativos desprendidos das aldeias, já acostumados com a cultura do homem branco.

Belém, então capital da província, mesmo sendo já na época um dos maiores centros exportadores do Brasil, tinha apenas 24 mil habitantes. A maioria da população sofria ou com a escravidão, ou com trabalhos semi-escravos nos latifúndios, além da miséria.

Havia também o descontentamento de parte do corpo militar, de forma que a situação desde 1831 não era lá muito agradável na província.

O início da revolta

Em 1832 as lideranças locais instigaram a população a pegar em armas para impedir a posse de um governador nomeado pela Regência. Mesmo assim o conservador Bernardo Lobo Sousa foi o escolhido pelo governo central e tomou posse em 1833, em meio a murmúrios que já defendiam a instalação de uma federação na província, fora dos mandos-e-desmandos do Rio de Janeiro. Bernardo Lobo Sousa foi extremamente repressor e autoritário com os descontentes, aumentando ainda mais a indignação da população.

Em 6 de janeiro de 1835, liderados por Antônio Vinagre, os cabanos tomaram o quartel e o palácio do governo de Belém, eliminaram Bernardo Lobo Sousa e nomearam Félix Malcher presidente da província. Nesta incursão, o comandante das armas também foi morto, e os cabanos acabaram recolhendo uma boa quantidade de armas e munições.

Fundar um Estado Federado parecia fácil e esta percepção foi ampliada pela distância entre o Grão-Pará e a capital, as dificuldades de locomoção das tropas imperiais para sufocar a organização do movimento e um certo isolamento regional. Mas acabou esbarrando em muitos problemas internos.

A população desistiu de apoiar as elites

É óbvio que o governo regencial não desejava perder qualquer província revoltosa, e a tropa imperial foi o principal agente do fim da Cabanagem. Mas não podemos deixar de fora da discussão o momento social vivido pela província do Grão-Pará, que também foi, em parte, peça determinante para o insucesso da revolta.

Havia o apelo popular por melhorias para as camadas mais pobres. É aquela coisa: querendo ou não, se não fosse o grosso da população ninguém teria tomado a capital e controlado a província. Só que as melhorias exigidas pela população vinham de encontro com o lucro dos latifundiários.

O primeiro a pular do barco foi Félix Malcher, que deixou o controle da província nas mãos de Francisco Vinagre. Dono de terras, Malcher não podia concordar com as reivindicações do povo, pois ele mesmo perderia dinheiro em seus negócios, além de procurar manter uma certa coerência em seus atos. Para explicar esta parte, gostaria de trazer aqui as palavras de Magda Ricci, professora da Universidade Federal do Pará:

Ressaltei que Félix Clemente Malcher buscou frear o ímpeto revolucionário em janeiro de 1835, conclamando os cabanos a largarem suas armas, trocando-as por suas ferramentas agrícolas. Várias razões levaram o primeiro líder cabano a tomar esta atitude contra-revolucionária.

Malcher havia ajudado a redigir um documento, no qual ele e seus compatriotas afirmavam que a morte do antigo Presidente Bernardo Lobo de Sousa estava ligada a uma exaustão generalizada e a um governo marcado ‘por sua prepotência e arbitrariedades’. Malcher e os cabanos, assinantes do documento, pediam à Regência que não nomeasse mais ninguém para o lugar de Lobo de Sousa até que D. Pedro II alcançasse a maioridade, pois que eles, cabanos, não receberiam ‘qualquer presidente que a Regência lhes mandasse’.

Lembravam ainda que a prosperidade do Pará estava associada à administração de um ‘benemérito e patriota cidadão’ a quem tinham aclamado. Concluíam sua ata demarcando que este presidente governava com o intuito de cuidar do ‘bem público’ e não de seus interesses pessoais.
[1]


Ou seja: assim como na Sabinada, não havia — pelo menos no documento citado pela professora — intenção de transformar o Grão-Pará em um país independente, separado do restante do Brasil.

Mesmo assim, muitos latifundiários e outros membros da elite local deixaram de apoiar o movimento justamente por este clamor popular por mudanças profundas. Os cabanos conseguiram manter o controle da província por um tempo, mas logo o governo regencial mandou tropas lideradas pelo mercenário inglês John Taylor. Estas tropas tomaram o controle de Belém por algum tempo, mas logo foram rechaçadas por cerca de três mil populares, organizados no interior da província e liderados por Eduardo Angelim.

Mas esta vitória dos cabanos também foi breve. Angelim foi nomeado presidente, mas a falta de propostas e de um plano de governo consistente dos cabanos para o desenvolvimento da província deixava não só a elite preocupada mas também parte da população pobre, que via o tempo passar e as divergências internas das pessoas ligadas ao poder atrapalharem suas reivindicações.

Havia desordem, muita fome e as pessoas estavam ameaçadas pela varíola.

Ainda em 1836, o governo regencial nomeou o brigadeiro Francisco de Andréa como novo presidente do Grão-Pará e autorizou a guerra aberta contra os cabanos. Quatro navios foram deslocados para a região e bombardearam Belém. Angelim foi preso pelas tropas imperiais e mandado para o Rio, onde foi julgado e condenado ao exílio na ilha de Fernando de Noronha.

A revolta não acabou neste episódio. Muitos cabanos fugiram para o interior e continuaram lutando, muitos até a morte. Como havia uma forte repressão do Império, os ânimos dos cabanos foram esfriando até eles aceitarem o fim dos conflitos em 1840. Estima-se que ao todo 40 mil pessoas morreram durante a Cabanagem. Quase metade da população do Grão-Pará na época!

A Cabanagem entrou para a História do Brasil como uma das mais importantes revoltas populares do país. Não alcançou seus objetivos, mas deixou marcas profundas na população até muitas décadas após o fim dos conflitos. Milhares de nativos morreram lutando, tribos inteiras foram dizimadas e sumiram do mapa. Hoje a região está desmembrada em alguns estados e em muitas regiões os problemas da década de 1830 permanecem até os dias de hoje.

Fontes

[1]Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840”. [link]

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