A Revolta dos Malês
De todas as revoltas que ocorreram no Brasil imperial, a dos malês é talvez a mais desafiadora e surreal, sob várias particularidades: foi organizada por escravos muçulmanos que estavam insatisfeitos com a imposição do culto católico sofrida aqui nas terras brasileiras, além de desejar a implantação de um governo muçulmano na Bahia.
Em janeiro de 1835, cerca de 1500 escravos estavam preparados para tentar tomar o governo e promover o que seria uma verdadeira revolução no meio do período regencial. Mas para entender por que a revolta ocorreu, nós precisamos entender o que estava acontecendo na região naquela época.
Escravidão e imposição: além de escravizado, o negro era proibido de professar sua fé
Em janeiro de 1835 a situação da cidade de Salvador era a seguinte: metade da população era composta de escravos, e muitos deles eram os chamados escravos de ganho, que realizavam trabalhos remunerados para outras pessoas, em uma espécie de aluguel — o senhor alugava o escravo para alguém que precisava de uma mão-de-obra e o escravo acabava ficando com uma porcentagem do dinheiro pago ao senhor pelo serviço.Desta forma muitos escravos juntavam dinheiro e compravam sua alforria, sua liberdade, e assim continuavam prestando serviços para outras pessoas, juntando mais um dinheirinho e até mesmo — não se assustem — chegavam a comprar escravos. Mesmo assim estes escravos de ganho — e muitos negros alforriados — não eram bem tratados pelos brancos, e eram constantes os episódios de violência contra os negros.
E mesmo separados de sua terra natal, na medida do possível os negros mantinham seus costumes. Só que, assim como a capoeira, reprimida pelas autoridades, os costumes religiosos dos negros sempre causaram um certo comichão na Igreja Católica e seus representantes aqui no Brasil pois, óbvio, a grande maioria dos negros — para não dizer todos — trazidos da África para cá não eram católicos.
Alguns, temendo a punição via chicote, até aceitavam o catolicismo, eram batizados na Igreja Católica mas, secretamente, continuavam a venerar seus orixás. Dúvidas se isto era verdade? Vai na Bahia ver como existe o que a gente chama de sincretismo religioso. Hoje em dia está tudo meio mesclado, já que ritos católicos com o tempo acabaram misturados com elementos do candomblé. É aquela velha máxima do “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. Um dia a gente escreve um texto discutindo este sincretismo tupiniquim, o tema é bem interessante.
Mas agora vamos voltar ao assunto do texto. Como eu disse, alguns negros aceitavam o catolicismo, mas a Igreja Católica encontrou muita resistência com os malês [1], os escravos que professavam a fé islâmica antes de serem trazidos para o Brasil. Eles não aceitavam a imposição do batismo católico, muito menos desejavam seguir os ritos impostos pela Santa Sé.
Para piorar as coisas, o governo em Salvador proibiu qualquer manifestação religiosa que não fosse católica, e a mesquita do bairro Vitória, reduto dos muçulmanos da região, foi destruída. Um dia “alguém” resolveu dar um basta nesta imposição.
Pai Inácio, Manuel Calafate, Ahuma e Aprício: alguns dos organizadores da revolta
A ideia dos revoltosos, liderados pelos negros Pai Inácio, Ahuma, Manuel Calafate, Luís Sandim, Elesbão do Carmo, Pacífico Licutan, Luiza Mahin, Aprício, Nicoti e Dissalu era a seguinte: no dia 25 de janeiro, por conta de uma festa católica na cidade de Bonfim, os negros aproveitariam o esvaziamento de Salvador para libertar todos os escravos muçulmanos que ainda não estavam alforriados — principalmente os que ainda estavam presos nas fazendas —, matariam ou escravizariam todos os brancos e mulatos católicos ou contrários ao islamismo, tomariam posse dos quartéis da cidade e dos engenhos e fundariam uma monarquia islâmica na região.Para alcançar este objetivo, arrecadariam dinheiro e comprariam armas e munições. Muitos destes negros muçulmanos trazidos nesta época para o Brasil já tinham experiência de combate com armas, o que deixava os revoltosos confiantes. No dia 25, os negros deveriam se juntar na região do bairro de Vitória e de lá investiriam inicialmente contra os quartéis de Salvador, além de iniciar a tomada da cidade. Só que eles foram delatados a um juiz de paz de Salvador, o que frustrou os planos.
Na noite do dia 24 de janeiro, a polícia invadiu a casa de Manuel Calafate, mas os negros que estavam ali reunidos resistiram aos policiais e seguiram para a cadeia, que ficava embaixo da Câmara Municipal, com o objetivo de libertar Pacífico Licutan.
No desenrolar da revolta eles até chegaram a tomar um dos quartéis da cidade, mas também foram cercados por forças imperiais. Incapazes de poder lutar contra uma força bem maior e melhor armada, os malês ainda resistiram até o dia 27, mas acabaram subjugados. Tropas imperiais, reforçadas pela polícia de Salvador e por civis que não desejavam uma revolta de escravos na região, cerca de 500 negros foram cercados próximos ao quartel da cavalaria em Água de Meninos, onde ocorreu a derradeira batalha.
A rebelião acabou com 7 mortos do lado das tropas imperiais e cerca de 70 do lado dos malês [2]. Todos os negros capturados — 281 ao todo — foram levados a julgamento. Os líderes foram condenados à morte, enquanto outros receberam penas que variavam de açoites, trabalhos forçados ou o degredo, sendo mandados de volta para a África. Muitos negros, mesmo não identificados oficialmente pela justiça sofreram açoites, alguns até a morte, ou foram expulsos do Brasil.
As autoridades de Salvador mantiveram o veto do culto islâmico e ainda por cima proibiram a circulação de negros muçulmanos à noite. Mesmo com a revolta dos malês esmagada pelas forças imperiais, o movimento serviu para demonstrar que havia força entre os negros.
Na época muitos senhores de engenho e outros proprietários de escravos temiam uma grande revolta negra no Brasil — que acabou não acontecendo — já que o número de escravos era muito grande no país. O medo provocado nas elites pela rebelião foi tão grande que a corte imperial proibiu a transferência de qualquer escravo baiano para qualquer outra região do país.
Notas
[1] O termo “malê”, ou “imalê” é de origem africana (ioruba) e significa “o muçulmano”.[2] Alguns historiadores divergem quanto ao número oficial de mortos nos combates. Alguns falam em mais de 10 soldados imperiais e mais de 70 negros mortos. Também há a divergência entre o número total de negros que fizeram parte da revolta. Alguns sugerem que o número real era de 1500 elementos, mas outros historiadores falam entre 600 e 700 revoltosos.
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