Canudos: loucura, utopia ou necessidade?


Quando falamos em Canudos, logo lembramos de Antônio Conselheiro e das brutais investidas dos soldados da República que destruíram o povoado de Belo Monte, que estava localizado dentro da fazenda de Canudos, na Bahia, próximo às fronteiras dos estados de Pernambuco e Sergipe, às margens do rio Vaza-Barris.

Mas, via de regra, nós quase-nunca discutimos as condições que levaram Canudos àquela grandiosidade toda que até hoje causa admiração e espanto a quem procura estudar mais a fundo a história do povoado e de seus habitantes.

Para isso, primeiro vamos tentar entender, nem que seja só um pouco, quem era esse tal de Antônio Conselheiro…


Conselheiro: beato e monarquista

Ele nasceu em 13 de março de 1830, na Vila do Campo Maior de Quixeramobim, no Ceará. Seus pais o batizaram de Antônio Vicente Mendes Maciel, mas a história o conhece como Antônio Conselheiro, o beato que teve uma infância marcada por várias agressões do pai alcoólatra e da madrasta, sem contar as inúmeras dificuldades encontradas por aquelas pessoas menos afortunadas que viviam no sertão nordestino.

Se hoje a situação do povo não é tão boa, imaginem no século XIX!

Mesmo assim, Antônio Maciel teve uma razoável formação escolar, sempre frequentou a igreja e era considerado por aquelas pessoas que viveram próximas a ele durante sua juventude como um bom rapaz, trabalhador e honesto. Sua família desejava que ele seguisse a vocação da batina, mas os problemas financeiros familiares não permitiram que ele pudesse estudar em uma escola apropriada.

“Antônio caminha incansavelmente, conhece cada palmo do sertão, seus segredos e mistérios. Por onde anda, faz sermões, prega o evangelho e dá conselhos. Gradativamente se transforma, de Peregrino a Beato, de Beato a Conselheiro, Antônio Conselheiro ou Santo Antônio dos Mares ou Santo Antônio Aparecido ou Bom Jesus Conselheiro. Deixa crescer o cabelo e a barba, aprofunda o seu já grande conhecimento da Bíblia e sua fama começa a correr todo o interior do Nordeste e rapidamente vai formando em torno de si um número crescente de fiéis seguidores.” [1]


Este era Antônio Conselheiro. Para a época, vivendo ao lado de milhares de miseráveis largados à própria sorte no sertão, não é exagero falar que ele era visto como uma pessoa iluminada. Daí para conseguir uma legião de fiéis seguidores, foi um pulo.

O “nascimento” de Canudos

Após muitas idas e vindas, conhecendo parte do sertão e vivenciando a difícil condição em que vivia grande parte da população, Conselheiro também passou por episódios em que foi espancado por policiais - por desafiar a ordem pública - e até acusado de crimes que provavelmente não cometeu.

Em 1893 ele teria se rebelado contra os impostos cobrados em uma cidadezinha no interior da Bahia. O governo da província enviou um contingente de 30 praças para prender Conselheiro e dispersar seus seguidores. Óbvio que ninguém ficou esperando a polícia chegar, todo mundo deu no pé.


Fugindo dos policiais, Conselheiro e seus seguidores entraram nas terras da fazenda de Canudos, que estava abandonada na época, instalando ali um pequeno povoado  —  batizado de Belo Monte  —  que atraiu em pouco tempo milhares de pessoas e desafiou a Igreja Católica e a República.

Isto aconteceu também porque, após a Proclamação da República, Conselheiro ainda era favorável à manutenção da monarquia, e a Igreja Católica já não admitia posição contrária, pois teria aceitado, mesmo que à contragosto, a ordem imposta que pôs fim ao Império Brasileiro. Com isso, Conselheiro passou a pregar contra os padres e bispos da região, o que levou o arcebispado da Bahia a emitir uma ordem proibindo que Conselheiro pregasse próximo às igrejas do estado.


Assim, Canudos virou uma espécie de território livre, onde as pessoas iam ouvir Antônio Conselheiro e acabavam ficando por lá, pois encontravam em Belo Monte oportunidades melhores do que as que existiam fora dali.

Grandes empregos, bons salários? Que nada! Em Canudos todos tinham um pedaço de terra e trabalhavam para o próprio sustento. Nesta época o nordeste passou por uma grande seca e um período prolongado de fome; e o governo republicano, recém-implantado após séculos de colonialismo e monarquia, tendo que fazer caixa, mantinha os impostos altos e não revertia estes tributos recolhidos em melhorias para a população. Esta condição, inclusive, ainda existe em algumas áreas do nordeste  —  e, porque não, do Brasil  —  até hoje.

Talvez daí explique-se o “sucesso” de Canudos enquanto cidade auto-suficiente, pois Conselheiro passou a  —  não sei se esta é a palavra certa, mas vá lá  —  desafiar a República em um povoado que não respondia ao poder público.

Em pouco tempo o povoado tomou ares (e tamanho) de uma cidade…

Ser aceito em Canudos dependia de alguns fatores: a pessoa não podia demonstrar simpatia pela República. Ladrões e prostitutas não podiam fazer parte da comunidade. E a pessoa tinha que respeitar acima de tudo a palavra de Conselheiro e ter vontade de trabalhar de alguma forma, seja nas lavouras, na limpeza ou na segurança do povoado.

A influência de Conselheiro começou a incomodar as lideranças políticas da região, que viam no beato uma ameaça ao eterno cabresto em que grande parte da população era mantida. Muitos trabalhadores, famílias inteiras deixaram as fazendas onde trabalhavam para os grandes donos de terras da região e rumaram para Canudos.

Em 4 anos, Belo Monte já era a segunda maior cidade da Bahia, com cerca de 25 mil habitantes. A grande maioria formada por ex-escravos que enfim conseguiam liberdade plena, já que após a abolição, por não ter para onde ir, muitos continuaram trabalhando nas mesmas fazendas onde foram escravos - e sem receber um salário digno pelo serviço.

O começo do fim

Em 1895 o arcebispo da Bahia enviou três frades capuchinhos para Canudos, a fim de dispersar a multidão. Conselheiro não proibiu a presença dos frades, mas o trabalho dos três não teve qualquer resultado prático.

Em novembro de 1896, Conselheiro e seus seguidores precisavam de madeira para a construção de uma nova igreja. A encomenda do material foi feita na cidade de Juazeiro e paga de forma adiantada, mas conta-se que o juiz da cidade, Arlindo Leone, proibiu a entrega da madeira.

Logo espalhou-se o boato de que os conselheiristas invadiriam Juazeiro. A população entrou em pânico e, por via das dúvidas, muitas pessoas fugiram de Juazeiro para Petrolina.

Com o clima favorável à confusão causada pelo boatos, o juiz então solicitou tropas estaduais, que partiram de Salvador para Juazeiro. Cerca de cem homens chegaram na cidade para defendê-la mas não tiveram lá muito trabalho, pois os seguidores de Conselheiro estavam bem longe dali e não planejavam atacar a cidade. Assim, os soldados rumaram para Canudos, mas foram surpreendidos por cerca de mil jagunços quando estavam estacionados em Uauá, um povoado próximo.


Conta-se que os conselheiristas portavam uma grande cruz de madeira e a bandeira do Divino à frente da tropa  —  ou seja, símbolos de paz  —  e eles é que foram recebidos à bala pelos soldados estaduais, assustados. Verdade, mentira ou poesia, a luta com os conselheiristas em Uauá assustou tanto o governo baiano quanto o governo central, no Rio de Janeiro, que logo tomaria medidas mais enérgicas.

No fim de dezembro de 1896 foi reunida uma tropa com 543 soldados, 14 oficiais e 3 médicos, sob o comando do major Febrônio de Brito que rumou, já em janeiro de 1897, novamente para Canudos.

Muito bem armados e abastecidos com farta munição, a tropa foi surpreendida diversas vezes no caminho. Os defensores de Canudos atacavam com táticas de guerrilha, pelas costas e pelos flancos, e logo sumiam da vista dos soldados. Muita munição foi gasta tentando acertar tiros à esmo, e quando chegou próximo do povoado o número de baixas da tropa já era relativamente alto, com 10 mortos e cerca de 70 feridos. Muitos conselheiristas morreram, tanto em Uauá quanto nesta segunda emboscada, mas mesmo assim a tropa federal teve que recuar.

Chamem metade do exército brasileiro!

Em março de 1897 um terceiro destacamento rumou para Canudos, desta vez com 1300 soldados, muitas armas, munições e seis temidos canhões krupp. No comando o coronel Moreira César, conhecido por sua eficácia e truculência. Chegando em Canudos na manhã do dia 3 de março, os soldados federais tiveram forte resistência dos conselheiristas, que lutaram bravamente até o pôr-do-sol. Moreira César foi atingido mortalmente e as tropas, em retirada, foram acossadas e perseguidas pela estrada por um bom tempo.

Não tinha jeito, Canudos parecia indestrutível, quando na verdade era apenas uma cidade cercada de trincheiras e defendida com bravura por homens e mulheres.

Dado o fracasso da terceira expedição, a opinião pública ficou assutada e o governo central mandou reunir, ainda no mês de abril, homens de diversas tropas de 17 estados  —  BA, SE, PE, PB, AL, RJ, PI, MA, PR, ES, MG, SP, RN, RS, AM, CE e PA  —  que rumaram, armados até os dentes e divididos em duas grande colunas, para Canudos. Eles atacaram de dois lados opostos, não sem antes sofrerem as mesmas emboscadas nas estradas que levavam para o povoado.

Óbvio que contra cerca de 12 mil homens  —  que representavam metade da força militar brasileira na época  —  Canudos caiu frente aos soldados republicanos. Mas o povoado ainda resistiu bravamente por sete meses. Centenas de soldados morreram, milhares de conselheiristas também. Aliás, houve um massacre, as tropas republicanas não tiveram lá muito perdão com os resistentes à invasão.

Antônio Conselheiro teria morrido no dia 22 de setembro do mesmo ano  —  alguns falam que foi devido aos ferimentos causados por estilhaços de uma granada, outros já falam em disenteria  —  mas os conselheiristas resistiram até 5 de outubro, quando os últimos defensores, encurralados na praça central do povoado, foram mortos.

"A morte de Antônio Conselheiro"

Canudos entrou para a História como uma espécie de grito de resistência e de união de um povo em torno de um ideal e a vontade de viver uma vida menos reprimida e sofrida. Não cabe aqui fazer o julgamento se Antônio Conselheiro agia de forma correta ou não ao desafiar a República e praticamente fundar um Estado semi-independente no meio do sertão, mas não podemos deixar de admirar a coragem tanto de Conselheiro quanto de seus seguidores, principalmente os homens de confiança que lideraram os conselheiristas.

Respondendo à pergunta do título, Canudos nasceu como uma necessidade do povo nordestino, tornou-se uma utopia quase-real ao alcançar um razoável nível de organização social, ganhando a simpatia de grande parte da população da região e transformou-se em loucura, quando se viu acuado pelas tropas federais e teve que se defender até a morte.

Fontes

[1] Site Portifolium, que traz muitas informações valiosas sobre Canudos e Antônio Conselheiro. O grifo na citação é de minha responsabilidade. (Observação: em 10/12/2020 o site apresentava uma mensagem de "acesso restrito". Mantive o link, pois quando acessei para pegar a citação ele era um site "aberto").

- A imagem com os bonequinhos, o "Povo de Canudos", é obra de dois artistas, Demóstenes Fidelis e Lusyennir Lacerda. Eles trabalham com fécula de mandioca e vocês podem conferir suas obras no Facebook ou no Instagram.

– Confiram também o artigo sobre Canudos escrito por Ligia Lopes Fornazieri no site Historiando.

– E por último (e não menos importante) a maior fonte, o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, obra que relata a guerra de Canudos. Euclides da Cunha foi como repórter cobrir a guerra e acabou escrevendo uma das maiores obras da literatura brasileira.

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