Os pobres nobres cruzados


Europa, século XI. Grande parte do continente estava fragmentado em vários reinos. Ao leste, tínhamos o Império Bizantino. A oeste, o califado omíada ocupava toda a Península Ibérica, até as fronteiras dos reinos de Navarra e Aragão — mais ou menos onde hoje é a fronteira da Espanha com a França.

Os europeus, fragmentados e sem grandes lideranças políticas, literalmente dependiam de uma ordem divina. Roma tinha forte influência sobre todos os reinos europeus católicos, os papas podiam não mandar diretamente, mas aprovavam (ou não) as ações dos nobres, ungiam reis e mediavam conflitos.

E desde sempre pensavam em retomar a Terra Santa e os territórios considerados sagrados e ocupados desde a expansão árabe, iniciada no século VII.


A Europa estagnada querendo abrir seus mercados, sob as graças do Senhor…

É preciso entender que as Cruzadas não foram um movimento isolado de um grupo específico de europeus interessados apenas em retomar o controle dos lugares sagrados do cristianismo. Ela significou, pelo menos de forma inconsciente para as pessoas da época, um movimento de grande reabertura do continente europeu.

Analisando hoje, as Cruzadas ajudaram a movimentar o então estagnado comércio da Europa. Em algumas regiões, provocou a criação de várias vilas e feudos para sustentar novas relações comerciais, no litoral provocou a construção de pequenos portos, além da construção de estalagens em locais ermos, para abrigar os viajantes, que com o tempo acabavam criando pequenas vilas (estão percebendo a circularidade disso tudo?) e forçou a melhoria de estradas há muito esquecidas ou que eram apenas trilhas nos campos e florestas.

Óbvio que não devemos imaginar que uma pequena trilha em pouco tempo transformou-se em uma larga estrada pavimentada, pois estamos na Idade Média, mas acredito que vocês tiveram uma noção bem pé-no-chão das mudanças expostas no parágrafo anterior. O que é importante frisar é que com as Cruzadas, os reinos feudais da Europa começaram a sair da estagnação característica da Alta Idade Média.

Devemos ter em mente também que a peregrinação à Terra Santa era, até certo ponto, comum naquela época, mas era uma viagem muito perigosa.

Então, como começaram as Cruzadas?

À esta equação de retomada dos locais sagrados e de relações comerciais esquecidas ao longo de séculos, um fator facilitava o discurso de Roma: os cristãos que peregrinavam a estes locais sempre voltavam com relatos de perseguições e violência dos muçulmanos.

Para piorar a relação, no ano de 1009 o califa fatímida Al-Hakim ordenou a destruição de todas as igrejas de Jerusalém, inclusive a Igreja do Santo Sepulcro, principal local de peregrinação dos cristãos.

Era um recado claro de que os cristãos não eram bem vindos ali.

Descrição: interior da igreja do Santo Sepulcro. Certamente um dos lugares mais sagrados para o cristianismo.

Mas entre os anos de 1027 e 1028 o filho de Al-Hakim, Ali az-Zahir, costurou com o Império Bizantino um acordo de reconstrução do Santo Sepulcro, além de permitir a volta da peregrinação dos cristãos, com uma diferença: cessariam as perseguições, mas os cristãos pagariam uma espécie de pedágio para ter acesso aos locais sagrados.

Mas em 1076 o controle de Jerusalém saiu das mãos dos fatímidas. Os seljúcidas, turcos recém-convertidos ao islamismo e de temperamento muito mais agressivo e completamente contrários aos cristãos conquistaram a região e rasgaram os acordos feitos para evitar a perseguição religiosa dos peregrinos, passando a governar sem o menor interesse de receber os europeus em seus domínios.

Os cristãos continuaram seguindo para Jerusalém, mas os relatos de agressões aumentavam cada vez mais, o que fez o papa Urbano II, no Concílio de Clermont (em 1095) conclamar os nobres para ajudar o imperador Aleixo, de Constantinopla, que já havia enviado um pedido de ajuda à Roma, pois temia uma investida seljúcida em seus territórios.

O raciocínio de Urbano II foi simples: se o Império Bizantino cair, os muçulmanos poderão facilmente bater nas portas de Roma. Mas antes que os nobres partissem para Jerusalém naquela que ficou conhecida como a Primeira Cruzada, um numeroso grupo de pessoas comuns resolveram enfrentar a estrada até Jerusalém.

A Cruzada Popular

Também chamada de “Cruzada dos Mendigos”, foi organizada principalmente pelo monge Pedro, O Eremita, atendendo ainda em 1095 o apelo do papa Urbano II.

Pedro conseguiu reunir cerca de 20 mil plebeus e cavaleiros de pequenos feudos — algumas fontes falam em 40 mil pessoas no total, mas o que importa é que era um número considerável de gentes para aquela época! — que rumaram sem qualquer organização para Constantinopla.

Agora você se pergunta: “como um bando de gente seguiu sob ordens de um monge, ao invés de um líder militar, até um local ocupado pelo inimigo?

É simples: Urbano II declarou que aquele que ajudasse na disputa pela Terra Santa, e morresse a serviço desta libertação, teria seu lugar garantido no Paraíso, ou seja, teria a indulgência plena de seus pecados.

Juntamente com Pedro, o cavaleiro Gualtério Sem-Haveres (do francês Gautier Sans-Avoir) também reuniu um considerável contingente — entre 17 e 19 mil pessoas. Pedro partiu de Colônia, em abril de 1096, enquanto Gualtério partiu de Poissy um pouco antes, rumo à Constantinopla.

O problema de deslocar um grande contingente de pessoas — relembrando: a maioria não tinha treinamento militar, eram plebeus, camponeses e cavaleiros menores, pobres — é que este povo precisa se alimentar de alguma forma. Se manter a disciplina de um batalhão sob a hierarquia militar já é difícil, imaginem manter a disciplina de um bando de homens, mulheres, idosos e crianças esfomeados?

Desnecessário dizer que algumas vilas foram saqueadas, vários feudos mais fortificados não receberam os viajantes — pois simplesmente não tinham comida nem água para todos — e várias lutas foram travadas ao longo da estrada até as portas de Constantinopla.

Como o imperador Aleixo teve que lidar com a massa camponesa...

Imagine-se um imperador pedindo ajuda para seu vizinho e, como resultado, num belo dia você é avisado que cerca de 30 mil pessoas estão batendo no portão de sua capital, esfomeados e sem qualquer liderança firme que os mantenha organizados.

Descrição: pintura retratando o imperador Aleixo I recebendo Pedro, O Eremita.

Esta era mais ou menos a situação que Aleixo I tinha que administrar no final de julho de 1096, quando as hostes de Pedro — já sem a mínima moral para controlar seu grupo — e de Gualtério chegaram a Constantinopla. Como não havia condições de manter todas estas pessoas na cidade, sequer nos campos próximos, Aleixo apressou-se em financiar o transporte deste contingente pelo Estreito de Bósforo.

E ainda foi claro ao pedir para que, ao chegar na Ásia Menor, eles não entrassem em confronto com os muçulmanos e aguardassem a chegada dos exércitos dos nobres europeus que, nesta altura, já estavam a caminho — naquela que ficou conhecida, oficialmente, como a Primeira Cruzada.

Mas adiantou avisar que os seguidores de Pedro não poderiam arrumar confusão? Claro que não. A fome falou mais alto e os peregrinos atacaram várias cidades turcas, com destaque para os subúrbios de Nicéia, que era considerada a capital dos seljúcidas mas, como era uma cidade muito fortificada, pode manter-se de pé mesmo com todo o assédio. Já a fortaleza de Xerigordon caiu após o ataque de um grupo de germânicos.

Como os turcos conheciam o terreno e, principalmente, tinham maior organização militar, eles aguardaram um tempo até contra-atacar. Quando foram retomar Xerigordon, o cerco turco durou pouco mais de duas semanas. Sem água, os cristãos tiveram que se render. Os que renegaram sua fé foram feitos escravos. Quem se recusou, morreu.

Os próprios turcos espalharam boatos de que Nicéia havia caído para os peregrinos, e o grupo que aguardava em uma região próxima, evitando se envolver antes da chegada dos nobres, resolveu seguir até a cidade, deixando apenas as mulheres, crianças, os feridos e os idosos no acampamento.

Emboscados em um vale pelos turcos, poucos peregrinos daquele grupo sobreviveram. No acampamento, as mulheres e crianças foram poupadas do massacre e os sobreviventes conseguiram se reagrupar em um castelo abandonado na região, e dias depois foram encontrados por soldados bizantinos, que os escoltaram de volta para Constantinopla.

Lá, estes peregrinos que ainda quiseram lutar pela libertação da Terra Santa juntaram-se, enfim, aos primeiros cruzados “oficiais” e voltaram a lutar contra os turcos. Mas a Primeira Cruzada (oficial) é assunto para outro texto…

Ah, antes de acabar: sobre a expansão árabe, já publicamos um texto sobre a conquista da Península Ibérica. Clica na imagem aí embaixo...

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