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E se a África não sofresse a partilha?


Desde o século XV, quando os europeus iniciaram sua expansão marítima para a América, Ásia e África, até meados do século XX que estes três continentes sofreram a ingerência do homem branco.

Alguns locais mais, outros menos, mas o fato é que os interesses comerciais europeus influenciaram o mundo todo durante um bom tempo. E o continente africano talvez tenha sofrido as piores consequências deste domínio.

De todos os processos imperialistas sofridos pela África, nenhum fez o continente sangrar tanto quanto o que nós historicamente denominamos de partilha. Mas antes de entender o que exatamente foi esta partilha, vamos ver como os países europeus enxergavam a África.

Para os europeus, a África era apenas fonte de mão-de-obra barata e mercado consumidor formado por sub-humanos:

Os europeus nunca esconderam que a África serviria apenas como área de exploração. O discurso real pode estar escondido atrás de uma cruz que batizava os infiéis ou de uma imposição ao fim do tráfico de escravos feita ao país que mais exportava mão-de-obra barata para suas lavouras (oi Brasil!), mas a verdade é que os africanos sempre sofreram alguma influência direta em suas vidas causadas pelos europeus desde os primeiros contatos de exploradores com a África sub-saariana, lá entre os séculos XIV e XV.

E eram várias justificativas: desde a já citada “falta de religião dos povos”, o que garantia a presença de missionários, passando pelo conceito disseminado entre os antropólogos europeus que viveram nos séculos XVIII e XIX, que o homem negro fazia parte de uma sub-raça humana, desprovida de desenvolvimento, e por isso fadada à dominação do homem branco.

A escravidão que tirou milhões de africanos de suas tribos e levou-os para as lavouras da América só acabou porque naquele momento as nações produtoras de bens de consumo — principalmente a Inglaterra — precisavam de maiores mercados consumidores. E escravo não recebia salário, por isso não tinha como participar deste mercado consumidor.

Assim o europeu ia ditando o ritmo das mudanças no continente africano. E quando foi necessário definir exatamente cada território que cada país imperialista deveria tomar conta, os europeus usaram a velha tática de dividir para conquistar.

A partilha: esqueçam a geografia e as regiões ocupadas pelos nativos, uma linha reta é mais fácil de traçar...

Os africanos tinham, em maior ou menor grau, uma clara noção de territorialidade, do espaço onde seu povo vivia e onde começava o território do outro povo. E os povos entravam sim em atrito, dependendo das relações humanas que existiam entre eles e que foram moldadas por séculos de convivência. Notem que este "atrito" foi colocado na frase para designar qualquer relação entre os povos, seja ela uma relação amistosa ou não, ok?

Todos estes atritos, principalmente os não-amistosos, eram resolvidos de alguma forma. Pela via diplomática, em uma reunião entre os chefes, ou pela guerra. Mas eram resolvidos da forma africana, e cada um com seus problemas, concordam? E o que o homem branco fez ao delimitar suas áreas de influência na África? Vamos tentar explicar com o desenho abaixo:


O péssimo desenho acima representa (vamos imaginar, ok? o professor aqui não sabe desenhar) um pedaço do continente africano. Reparem que os territórios eram inicialmente ocupados por povos distintos, com diversos fatores que os separavam (cultura, religião, idioma etc…).

O homem branco veio e disse que de uma hora para outra uma linha estava separando estes povos. Em alguns lugares, o povo que era numeroso, unido e forte (p.ex., o Povo "Vermelho") passou a ser minoria naquele espaço geográfico que agora o homem branco dizia ser um país (o País "B", com maioria do Povo "Azul"). Esquece a cultura e o idioma diferentes, de um dia para outro você foi obrigado a viver em um mesmo território com um povo que podia ou não ser bem diferente do seu.

Estas divisões causaram diversos conflitos étnicos em diversos pontos da África. E não se assustem achando que isso é uma exclusividade africana, pois na Europa e na Ásia também ocorreram e ainda ocorrem conflitos entre alguns povos. Até mesmo povos milenares, que já deveriam ter acertado os ponteiros através dos séculos. Imagina isso acontecendo, de uma hora para outra, entre os povos africanos.

Imaginou? Pois é, agora vamos observar o mapa real da África após a partilha.

Olha quanta linha reta!

A Conferência de Berlim, que ocorreu entre 1884 e 1885, dividiu o continente nestas áreas de influência como nós podemos ver acima. O que definiu exatamente a área que cada país deveria tomar conta foram os trabalhos de exploração do interior do continente feito por homens como David Livingstone e John Speke, além dos contatos comerciais a partir das navegações, a maioria realizada bem antes da Conferência de Berlim.

Esta divisão inicial também sofreu com guerras entre colonos de países diferentes como, por exemplo, a guerra dos Bôeres, que ocorreu entre colonos holandeses e os ingleses que viviam no sul do continente. O motivo? Claro que não foram as lindas savanas ou a proteção dos animais da região, mas sim a descoberta de diamantes.

Aproveitando a deixa, outro fator que levou os europeus a controlar o continente foi justamente a quantidade de metais e pedras preciosas, além das matérias-primas. Por viver muito tempo isolado do mundo exterior, a África tinha toneladas de metais e outros tesouros enterrados, esperando apenas a extração. Como os africanos até sabiam trabalhar (muito) bem o metal mas não o faziam em larga escala, o europeu encontrou muita matéria-prima para as crescentes indústrias e fábricas que produziam as riquezas de seus países.

Mas e a África sem a partilha?

Bom… o continente já conta com mais de 50 países, muitos definidos a partir desta partilha. A África sofreu um grande boom de independências logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, mas os problemas causados pelas divisões existem até hoje.

Muitos destes países são extremamente subdesenvolvidos, em grande parte por conta da exploração imperialista. E hoje em dia alguns países perdem milhões de dólares por ano tentando estancar conflitos internos que tem vários motivos, muitas das vezes são conflitos étnicos — motivados por diferenças históricas entre povos distintos, obrigados a viver dentro da mesma fronteira — além do não-crescimento das economias justamente pela insegurança causada por estes conflitos.

Alguns países sofrem com a fome crítica, existem milhares de campos de refugiados espalhados pelo continente e a situação, dependendo do país, só tende a piorar.

Na África do Sul nós tivemos uma época intensa de apartheid, aquele regime segregador que separava brancos e negros. Talvez, se o homem branco não invadisse a África, nós nunca teríamos um exemplo como Nelson Mandela para mostrar ao mundo que apesar das diferenças, somos todos iguais. Mandela é uma personalidade valorosa para o mundo, mas não seria tão bom se o homem não dependesse destes exemplos para ser melhor com o próximo?

Nada garante que sem a interferência europeia a África seria, hoje, o melhor lugar do mundo para se morar. Mas é fato que os europeus atrapalharam muito as relações entre os povos, promovendo exploração humana e material, além de fomentar conflitos entre os vários povos.

Leitura interessante sobre o tema:

- A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra, texto de Wolfgang Döpcke, que pode ser lido neste link (PDF, verificado pela última vez em 28/04/2020).

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