O coração valente de William Wallace


Lendas e histórias verdadeiras da Idade Média européia costumam confundir as pessoas que procuram saber um pouco mais sobre o período. O que é verdade e o que não é tão verdadeiro assim em uma colcha de retalhos de povos, costumes e lendas europeias?

Em se tratando da pessoa que dá nome ao texto, temos algumas certezas de quem foi e como viveu um certo William Wallace, um escocês que, assim como vários outros personagens históricos, também tem seu nome envolvido em histórias e “estórias”.

William Wallace nasceu em Elderslie, provavelmente no ano de 1272.

Seu pai, Malcolm Wallace, era dono de algumas pequenas terras e trabalhava auxiliando a administração escocesa. William recebeu educação caseira de sua mãe e também deve ter estudado com os religiosos que viviam na paróquia de Paisley.

Ele tinha dois irmãos: Malcolm Wallace Jr e John Wallace. Nesta época a Escócia vivia tempos de relativa paz sob o reinado de Alexander III. Mas com a morte do rei em março de 1286, a disputa pelo trono escocês impulsionou uma série de conflitos internos e atraiu a atenção do rei da Inglaterra, Edward I, o famoso Longshanks que aparece no filme “Coração Valente”.

A briga dos nobres e a esperteza de Edward I

"O problema da Escócia é que ela está cheia... de escoceses."

Os nobres escoceses literalmente venderam a liberdade do país em troca de suas posses na Inglaterra. Explico: quando o trono da Escócia ficou vago, vários nobres reivindicaram o direito de usar a coroa. O processo todo que culminou no trono vago é um pouco confuso e eu confesso que li algumas versões da história — todas em inglês, o que dá margem a erros na tradução por minha parte(*) —, mas para seguirmos neste texto basta saber que Robert Bruce, pai do futuro rei da Escócia, disputava o direito de reinar com mais doze nobres!

Todos os treze estavam cercados de apoiadores dispostos a lutar pela coroa. Óbvio que isso não ia dar certo.


Neste impasse, para tentar evitar um conflito maior entre as casas escocesas, o bispo William Fraser, da paróquia de St. Andrews, que era também um dos “Guardiões da Paz” da Escócia — os guardiões eram pessoas que formavam uma espécie de conselho para tentar, pela via diplomática, diminuir os conflitos na Escócia — sugeriu que o rei Edward I intermediasse a escolha do rei. Os nobres, por sua vez, não protestaram contra a sugestão do bispo, provavelmente com medo de bater de frente com Edward I, já que todos também tinham terras na Inglaterra.

Como Edward I não era nem um pouco bobo — e acabou nomeado Lorde Supremo(**) da Escócia para mediar a escolha do novo rei — ele aproveitou para, no dia 11 de junho de 1291, ordenar que todos os castelos escoceses respondessem diretamente à Coroa inglesa. E os funcionários da administração escocesa também deveriam deixar seus postos para dar lugar a funcionários ingleses.

Na prática, Longshanks colocou a Escócia sob sua proteção. E como os nobres não estavam dispostos a enfrentar o rei inglês, logo após o golpe todos juraram fidelidade à Coroa, aceitando a imposição de Longshanks.

Só que muitos escoceses perderam seus lugares onde antes tiravam o próprio sustento. Lembram que no início do texto eu disse que o pai de Wallace trabalhava para a administração escocesa? Ele certamente foi um dos prejudicados com esta ordem de Edward I.

E não só as pessoas que trabalhavam em cargos administrativos se sentiram prejudicadas e se revoltaram, mas muitos camponeses também não aceitavam as imposições de Longshanks. Sem contar o descontentamento com o destino dos impostos, que agora eram pagos para os ingleses.

Em 1292, Longshanks nomeou Jonh Baliol como rei da Escócia, mas Baliol foi coroado prestando fidelidade à Inglaterra. Assim, a Escócia virou apenas um “protetorado” inglês. Claro que muitos dos nobres escoceses também não gostaram da imposição de Longshanks, muito menos da submissão de Baliol, mas nenhum deles tomou a frente dos protestos. Ninguém teve coragem de peitar Longshanks, e é aí que entra William Wallace.

Meu filho, eu te digo em verdade, nenhum dom é como liberdade. Então nunca viva em escravidão.”


Esta frase é atribuída a um tio de William, que teria auxiliado em sua educação quando ele já tinha 18 ou 19 anos. Nesta época William, a mãe e o irmão mais novo teriam viajado até Dunipace e ficaram por um tempo na casa deste tio — algumas fontes dizem que era o tio de seu pai, chamado Richard Wallace, outras que era o tio de sua mãe, conhecido como Reginald de Crauford — mas o que sabemos é que quando voltou de Dunipace, William começou a reunir e liderar alguns camponeses descontentes e casou-se com Marian Braidfoot em 1297.

O assassinato de Marian, também em 1297, teria ocorrido em represália pelas atitudes de William, portanto esqueçam o motivo que aparece no filme “Coração Valente”. O mandante do assassinato de Marian, o administrador de Lanark, William de Hazelrig, foi morto por Wallace motivado pela vingança, e com este ato, Wallace passou a ser procurado pelas autoridades inglesas como assassino.

O fato é que após o assassinato da esposa, Wallace passou a liderar diretamente um grande número de escoceses descontentes, ao lado de Andrew Murray, outro que também já liderava um considerável bando de camponeses maltrapilhos.

Também aliaram-se a Wallace os nobres James Stewart, James Douglas e Robert Bruce, os mais incomodados com a mão-de-ferro de Longshanks na época — mas que, como já foi citado, não tiveram coragem de ficar à frente da revolta. Tanto que antes da batalha de Irvine, em julho de 1297, os nobres aceitaram os termos da Coroa inglesa e se renderam.

Mas entre agosto e setembro do mesmo ano os rebeldes já estavam unidos em um grande exército de foices, estacas, facões, ancinhos e espadas. Grandes confrontos contra o exército inglês estavam por vir.

A Batalha de Stirling

No dia 11 de setembro de 1297 as forças escocesas estavam estacionadas próximas ao castelo de Stirling. Os ingleses estavam acampados do outro lado do rio Forth e, apesar da superioridade numérica inglesa, a batalha foi decidida em um lance rápido da estratégia escocesa: quando os ingleses foram atravessar a ponte para montar acampamento do lado onde estavam os escoceses, foram atacados violentamente.

Podemos dizer sem medo de errar que a coisa ficou bem feia para os ingleses, que foram literalmente massacrados em Stirling.


Stirling hoje é uma pacata cidadezinha escocesa, e na época da batalha o vale do rio Forth tinha apenas o castelo e um pequeno ajuntamento de casas em volta e algumas vilas esparsas.

Hoje a cidade tem seus marcos homenageando os escoceses que lutaram pelo país naquela batalha.

Após Stirling, William Wallace teve que liderar sozinho o exército escocês, já que nesta batalha o seu companheiro de luta, Andrew Murray, foi ferido mortalmente. Ainda no fim do ano, eles atacaram o condado de Durham, já em território inglês, mas tiveram que voltar para a Escócia para aguardar o fim do inverno. Talvez este erro tenha sido crucial para a vitória.

A Batalha de Falkirk e o outro erro escocês: a divisão de forças dos combatentes

O que aconteceria se Wallace continuasse seus ataques na Inglaterra ainda no inverno de 1297? Será que as forças escocesas conseguiriam vencer os ingleses mesmo sem armas adequadas e lutando também contra o frio?

Em março de 1298 Robert Bruce nomeou William Wallace cavaleiro e guardião da Escócia.

Com o título veio a responsabilidade, agora oficial, de liderar o exército escocês. Mas apesar de todos os esforços em reunir o maior número possível de homens, o exército inglês, liderado desta vez pelo próprio Longshanks, chegou à Escócia em julho do mesmo ano com um grande número de combatentes.

Na Batalha de Falkirk os escoceses foram esmagados, mesmo com as táticas de guerrilha e as defesas especialmente preparadas para intimidar os ingleses. Enquanto isso, Robert Bruce estava em Ayrshire, liderando um ataque ao castelo local. Esta divisão de forças escocesas foi crucial para determinar o rumo dos acontecimentos.

Talvez, juntas, as duas forças poderiam sair do campo vitoriosas. Das fontes que eu pesquisei, todas, sem exceção, colocam o exército inglês como uma força invencível pela quantidade de soldados no campo de batalha em Falkirk. Mas Stirling ainda estava na memória como um exemplo a ser seguido e uma possibilidade de vitória. Infelizmente, para os escoceses, a vitória não veio.

William teve que viver em uma espécie de clandestinidade. Caçado pelos ingleses após quase morrer no campo de batalha em Falkirk, ele renunciou ao título de guardião e, segundo algumas fontes, foi até Roma, provavelmente em busca de apoio do papa. Tentou contato também com nobres escandinavos e franceses para ajudá-lo na luta contra Longshanks, mas sem sucesso.

Os ataques de Wallace aos ingleses continuaram até 1304, quando ele foi capturado na Escócia e levado até Londres, onde foi morto em uma sessão pública de tortura, mais ou menos como está retratado no filme “Coração Valente”.


Mesmo morto, William Wallace inspirou os escoceses na busca pela independência. Hoje a Escócia faz parte do Reino Unido da Grã-Bretanha, fato que está consumado desde 1707. Mas na época em questão Robert Bruce conseguiu, após muitas lutas contra os ingleses, o reconhecimento da independência escocesa através do Tratado de York, assinado em 1328.

Notas e fontes:

(*) Uma das versões que eu li é que Edward I entrou em negociações com o rei Eirick II da Noruega para casar seu filho, Edward — que viria a ser coroado como Edward II —, com a princesa Margaret, que seria, por direito, futura rainha da Escócia. Na época o príncipe tinha 5 anos e a princesa, 6. Deste acordo nasceu o Tratado de Birgham, que foi ratificado em 28 de agosto de 1290. Só que Margaret teria morrido durante a viagem e o trono realmente ficou vago, gerando toda a disputa. Complicado, concordam? Agora imagina colocar isto no texto — e no filme — sem tumultuar a coisa toda! E nem me perguntem porque Margaret seria rainha da Escócia se o pai dela era o rei da Noruega! São laços nobres da Europa medieval que nem valem a pena entrar em detalhes.
(**) Tradução livre do inglês para “Lord Paramount”, corrijam se eu estiver errado, por favor.
- “Wars of Independence: William Wallace”. Site de um programa produzido pela BBC — em inglês.
- The Society of William Wallace. Site em inglês com biografia e algumas fotos.
Obs.: todos os links foram verificados em 18/12/2019.

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