Cabral descobriu o Brasil ou veio aqui apenas “tomar posse”?


Em 22 de abril de 1500 a esquadra do português Pedro Álvares Cabral chegou ao que hoje nós chamamos de “Brasil”, mais especificamente na região de Porto Seguro, na Bahia. Por muitos e muitos anos o termo “descobrimento” foi o mais utilizado para explicar o fato histórico, como se tudo não tivesse passado de um desvio de rota, mas… será que os portugueses realmente “tropeçaram” no Brasil durante a viagem para as Índias?

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As primeiras grandes navegações

Portugueses e espanhóis foram praticamente os primeiros europeus pós Idade Média que saíram navegando mundo afora e descobrindo novas terras ou rotas marítimas para terras já conhecidas, mas que apresentavam algum problema em sua rota terrestre — como a rota para as Índias, por exemplo. Ainda citando o caminho para as Índias, por terra os europeus precisavam passar por uma grande extensão sob domínio muçulmano para chegar até lá. Era tão difícil na época que eles preferiram enfrentar os perigos do mar…

Neste ponto, devemos citar que o reino da Espanha por muitas vezes contratou navegadores de Gênova e Veneza, duas potências mercadoras marítimas do fim da Idade Média, que já comandavam a navegação do Mediterrâneo e construíram verdadeiros impérios apoiados em entrepostos comerciais. Mas os portugueses também tinham lá seus truques. Deem uma lida no nosso texto sobre a Escola de Sagres (em breve!) que vocês vão entender melhor esta parte.

Com todo este pioneirismo — e investimento — era de se esperar que os reis de Portugal e Espanha também desejassem ter a soberania nas novas terras, ou pelo menos a preferência ao comercializar com os povos destes lugares. Por isso, foram até a Igreja pedir permissão.

Como assim?” você pergunta… bom, o que precisamos entender é que a Santa Sé — ou seja, a Igreja Católica Apostólica Romana — tinha a soberania sobre todas as ilhas da Terra, garantida segundo o Edito de Constantino (sim, o mesmo Constantino que liberou o culto cristão em Roma). Ou seja: uma determinação católica do século IV ainda estava valendo no século XV, quando os portugueses e espanhóis resolveram sair navegando mundo afora.


E para os europeus daquela época, todas as terras a serem descobertas eram, inicialmente, ilhas. Não havia a noção de existiam outros grandes continentes. Isto dava plenos poderes ao papa para resolver qualquer problema que porventura viesse a aparecer por culpa dos navegadores que resolvessem ganhar o mundo financiados pelos reinos sedentos de novas terras.

Portugal foi o pioneiro: a partir da década de 1440 o infante D. Henrique levou Portugal a iniciar a exploração da Costa do Ouro — aquela região onde hoje temos Gana, Serra Leoa, Guiné etc… — na África continental, sem contar a posse de arquipélagos próximos, como Açores e Cabo Verde.

Junto com o ouro africano, Portugal também começou a comercializar marfim e escravos. Óbvio que a coroa espanhola ficou de orelha em pé com esta expansão portuguesa.

Os espanhóis então resolveram lançar algumas expedições, mesmo que de forma precária e sem muito financiamento inicial da coroa — pois temos que lembrar que nesta época a Espanha ainda lutava contra os árabes em seu território.

Então Portugal, temendo que os espanhóis chegassem até suas terras descobertas na África e tomassem posse de outras regiões próximas, conseguiu junto com o papa Inocêncio VII, no ano de 1481, que fosse aprovada a bula Æterni Regis, que dividia as terras por um paralelo que passava mais ou menos na altura das Ilhas Canárias.

Com a Æterni Regis, o que estava ao sul ficava para Portugal, e ao norte para a Espanha. E foi procurando respeitar a Æterni Regis que Cristóvão Colombo — agora com uma razoável estrutura financiada pela Coroa, após a expulsão completa dos muçulmanos da Espanha — navegou até chegar no continente americano em 1492.

Aí foi a vez dos portugueses ficarem de orelha em pé, além de alegarem que Colombo ultrapassou a bula ao descobrir as terras mais ao sul…

Mais terras, novos acordos...

Vamos dividir o mundo mais uma vez, mas leva essa linha mais prá lá porque aqui não tem terra!

Com a primeira divisão — a já citada bula Æterni Regis — Portugal levou vantagem na partilha. Após o descobrimento da América em 1492, os portugueses reclamaram com o papa da época, o castelhano Alexandre VI, solicitando uma nova divisão, desta vez meridional. O papa então decidiu, em 1493, mediante a bula Inter Cætera, dividir o mundo, as terras descobertas e as terras a descobrir a partir de uma linha imaginária que passava a apenas 100 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde.

No mapa abaixo, esqueçam por enquanto a referência ao Tratado de Tordesilhas e reparem onde passava a bula Inter Cætera e depois a Æterni Regis. Os espanhóis levaram uma senhora vantagem na divisão do continente americano, hein?


Óbvio que Portugal não gostou desta divisão. E é aí que a gente responde a pergunta do texto: os navegadores portugueses certamente SABIAM que existiam terras mais ao sul.

O descobrimento do Brasil não foi mera coincidência, obra do acaso que acabou levando Pedro Álvares Cabral a desgarrar da costa africana durante uma tormenta e vir parar no Brasil. Naquela época os portugueses já tinham conhecimentos náuticos suficientes para saber se estavam fora da rota, no caso de uma tormenta tirá-los do rumo.

A historinha que nossos professores contavam em sala de aula está completamente errada — pelo menos até o início da década de 1990 era assim, os mais novos talvez nunca ouviram a versão da tormenta que desviou a rota de Cabral. Ao reclamar da bula Inter Cætera e pedir uma nova divisão, Portugal acenava com a posse de uma coisa que, na época, nem era muito levada em consideração: a informação.

Por isso os portugas ficaram satisfeitos em 1494 com a assinatura do Tratado de Tordesilhas, que estipulava uma linha imaginária não a 100, mas a 370 léguas de Cabo Verde (confere no mapinha ali em cima).

Portugal certamente não sabia quanta terra existia em suas “posses” — segundo Tordesilhas — mas sabia que encontraria terras caso navegasse mais para o oeste, de preferência saindo de algum entreposto na África ou, quem sabe, encarando uma viagem mais longa a partir de Portugal. E de onde veio parte desta informação? Dos relatos e das informações que o próprio Cristóvão Colombo forneceu da então “chegada às Índias”.

Assinatura do Tratado de Tordesilhas.

O Tratado de Tordesilhas não foi algo imposto ou forçado pela Espanha. Discussões acaloradas certamente definiram as 370 léguas, mas nada do que nós podemos considerar como agressivo para qualquer uma das partes aconteceu durante as discussões. Portugal deu-se como satisfeito nas negociações e assinou o Tratado.

Quanto à questão do descobrimento, Cabral fez talvez o que nós podemos chamar de ato oficial de tomada de posse, já que, segundo o historiador português Jorge Couto em seu livro “A Construção do Brasil”, lançado em 1996, o navegador português Duarte Pacheco já havia comandado uma expedição à costa brasileira em 1498, à mando de D. Manoel, para ter certeza de que existiam terras mais ao sul.

Duarte Pacheco chegou até o litoral do Pará e à foz do rio Amazonas, mas teve que manter segredo de sua descoberta, pois as terras em questão estavam, segundo Tordesilhas, em território espanhol. Com esta informação, D. Manoel financiou a viagem de Pedro Álvares Cabral, que acabou entrando para a História do Brasil como o descobridor, mas Duarte Pacheco chegou primeiro e não levou os méritos.

Como prêmio de consolação, Pacheco fez parte da frota de Cabral que tomou posse de parte das terras onde hoje é o Brasil.

E sobre a divisão das terras, é óbvio que ingleses, holandeses e franceses não iam deixar barato. Mesmo sem o aval da Igreja Católica, eles passaram a financiar expedições clandestinas, enquanto usavam a diplomacia para tentar virar o jogo junto às monarquias da Península Ibérica. É desta época a famosa frase do rei Francisco I, da França, que disse:

Gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que me afastou da partilha do mundo.

Mas essas tretas serão assunto para outros textos…

Fontes:

- Uma das melhores fontes sobre a documentação desta época é a página oficial do Arquivo Histórico da Torre do Tombo, mas o trabalho de digitalização dos documentos ainda não está completo, pois é algo bem trabalhoso, já que os documentos hoje em dia são papéis bem antigos e demandam muito cuidado na manipulação.
- Outra fonte interessante é a coleção digitalizada disponível pela Biblioteca Nacional de Portugal.
Os dois links são pra fuçar (vai lá pesquisador!) e foram verificados em 18/12/2019.

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