A Reforma de Lutero


Europa, século XVI. Descontente com as imposições da Igreja Católica, um alemão iniciou uma grande mudança no cristianismo ocidental. Nascido em 1483, Martinho Lutero, um monge agostiniano e professor de teologia, contestou a Igreja a partir de 1517 e acabou fundando uma nova religião, o protestantismo.

Lutero, que teria entrado para a ordem monástica após escapar de uma tempestade de raios, pois entendeu aquele evento como um milagre, percebeu que algo estava errado na Igreja Católica.

Verdadeira dona da fé na parte ocidental da Europa nesta época e já esticando seus braços para as novas descobertas ultramarinas, a Igreja Católica passava por um período turbulento, sofrendo pequenas contestações aqui e ali, que acabavam abafadas pelo temor, mas não deixavam de abalar os pilares que foram construídos ao longo de toda Idade Média.

Dentre os vários fatores que levavam às contestações, aos questionamentos junto à ordem católica, Lutero iniciou seus protestos contra as indulgências, que nada mais eram que o perdão, parcial ou total, das penitências — ou penas temporais — que um cristão deveria pagar pelo pecado cometido.

E a Igreja vez ou outra emitia estas indulgências mediante um pagamento, ou seja: por um valor material o pecador pagava uma dívida espiritual. Até aí tudo bem, segundo os preceitos da época. Mas o problema começou quando a Igreja passou a comercializar em larga escala as indulgências, transformando a prática, que antes era reservada e tolerada em apenas alguns casos específicos, em algo comum na relação Igreja / fiéis.

Lutero, indignado com aquela situação, apresentou em 31 de outubro de 1517, na igreja de Wittenberg, suas famosas 95 teses. A “Disputação do Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências” propunha uma reflexão aos fiéis e sacerdotes, além de discordar da cada vez mais frequente venda de indulgências. Para Lutero, os fiéis estavam ficando desleixados, como que perdendo o medo de pecar, já que bastava confessar e pagar para se ver livre das penalidades. E é óbvio que a Igreja não gostou do “desafio” proposto por Lutero, e partiu para o contra-ataque.

Lutero literalmente pregou suas 95 teses nas paredes da igreja.

A resposta da Igreja Católica

O papa Leão X solicitou ao teólogo Silvestro Mazzolini que refutasse as 95 teses de Lutero. E estudando o texto do alemão, Mazzolini chegou à conclusão que Lutero opunha-se claramente à autoridade papal, pois discordava de uma de suas bulas. Declarou também que Lutero era um herege e aproveitou para escrever uma refutação acadêmica às 95 teses. Em seu texto, Mazzolini mantinha a autoridade papal sobre a Igreja e condenava as teorias de Lutero como um desvio e uma apostasia — que neste caso específico seria “o ato de desviar-se ou afastar-se do relacionamento com Deus”.

Após muitas discussões — Lutero chegou a questionar abertamente a autoridade papal em um debate na cidade de Leipzig —, tentativas e ameaças da Igreja de fazer com que Lutero voltasse atrás em suas idéias, o papa Leão X excomungou o alemão em 3 de janeiro de 1521.

Mas já era tarde. Lutero, neste meio tempo, já havia conquistado simpatizantes e pessoas interessadas em debater as escrituras sagradas em uma ótica diferente da imposta pela Santa Sé.

Mas como Lutero conseguiu isso, em um ambiente completamente dominado, por séculos, pela Teologia Cristã? Para tentar entender isto, nós precisamos consultar um outro alemão…

Weber e a ética protestante

Max Weber, considerado um dos pais da Sociologia, foi um economista alemão que viveu naquele turbulento período de transição entre os séculos XIX e XX (portanto, bem depois de Lutero).

Naquela que talvez seja sua obra principal, o livro “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Weber nos apresenta a ideia de que o agente principal do desenvolvimento do capitalismo é a mudança ideológica e teológica proposta por Lutero lá no século XVI.

Ele fala também das outras mudanças — culturais e sociais — ocorridas no período em que viveu Lutero, mas para o texto não ficar muito extenso, vamos usar aqui apenas a linha de raciocínio de Weber em cima da teologia da “ética protestante”.

Ao instituir o protestantismo, Lutero teria impulsionado o trabalho sem culpa. Explico: para a Igreja Católica, só teria salvação aquela pessoa que dedicasse sua vida a deus, longe dos pecados do dia-a-dia. As pessoas que viviam nos monastérios, que tinham vocação religiosa — padres, frades, monges, freiras etc… — iriam para o céu, pois passavam a vida orando e servindo à Igreja.

Já as pessoas comuns, que apesar de serem religiosas, frequentarem a Igreja e confessarem seus pecados — e até mesmo compravam suas indulgências, lembram? — dificilmente alcançariam o reino dos céus, pois viviam em eterno pecado no “mundo dos homens”.

A Igreja Católica condenava o acúmulo de bens, o lucro e consequentemente qualquer trabalho, por mais honesto que fosse, que levasse a isto.

A pessoa trabalhava de sol a sol, seguia rigorosamente os preceitos católicos, frequentava a igreja, evitava causar o mal para outras pessoas e mesmo assim, segundo a Igreja Católica, ainda tinha muita chance de ir para o inferno!

E o que Lutero fez? Disse que o homem poderia se salvar por meio do trabalho. Querendo ou não, Lutero democratizou o acesso à salvação espiritual do indivíduo.

O que Weber fez foi ligar os pontos em sua teoria: bastava trabalhar cada vez mais para glorificar a deus. Trabalho gera renda e esta renda é acumulada. Assim, o indivíduo pode acumular dinheiro e bens materiais sem culpa. Extremamente simples de entender e de definir o capitalismo. Se Weber estava totalmente certo nesta teoria é outra conversa, mas eu acho que vocês conseguiram entender o porquê das idéias de Lutero terem conquistado tanta gente na Europa e mais tarde no Novo Mundo, principalmente nos EUA, onde milhares de protestantes fugiram para construir uma vida nova longe da Europa - e da Igreja Católica.

Outras mudanças promovidas por Lutero

Enquanto teólogo, Lutero também desejava que o maior número possível de pessoas tivessem acesso à informação contida no principal livro cristão, a Bíblia. Só que nesta época 99,99% das bíblias disponíveis na Europa Ocidental estavam escritas em latim, e a grande maioria da população sequer tinha acesso ao estudo formal da época. Aprender latim? Era um luxo que quase ninguém tinha acesso.

E adivinha que “classe social” sabia o latim de forma fluente? Acertou em cheio quem pensou no clero, o que causava um certo monopólio do acesso à informação bíblica.

Lutero traduziu a Bíblia para o alemão, mas do que adiantava ter a Bíblia na língua de seu povo se a grande maioria da população continuava sem saber ler?

Na esteira da “democratização da palavra de deus” veio também a ideia de que todos tinham direito a aprender a ler.

Com o tempo, alguns reinos e nações que estavam nascendo naquela época começaram a estimular e investir em educação para o povo. Daí para frente podemos observar que nesta época ocorreu na Europa um desenvolvimento econômico maior em regiões onde o protestantismo era mais forte — por isto Weber é tão agudo ao associar o capitalismo com protestantismo.

Esta Reforma de Lutero, e na sequencia Calvino e também os anglicanos na Inglaterra vão provocar uma resposta da Igreja Católica. Mas sobre a Contra-Reforma nós trataremos em um outro texto…

Fontes:

- Estudo Introdutório às 95 Teses de Martinho Lutero. Vale a pena dar uma lida para entender melhor a gênese do protestantismo.
- As 95 teses, numeradas, podem ser lidas neste link. O desenho do Lutero pregando as teses na parede da igreja eu também peguei deste site.
- WEBER, Max. “A ética protestante e o espírito do capitalismo”.

Todos os links foram verificados em 10/12/2019.

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