Uma capital para o islã


No ano de 750 aconteceu um golpe na esfera política do islã: Abu-l-‘Abbās, após três anos de combate, derrubou os dirigentes da dinastia omíada — que estavam no poder desde 651 — e tomou o poder em Damasco, tornando-se o califa. Ele alegava descender do tio de Maomé, al-‘Abbās, por isso sua dinastia ficou conhecida como abácida.

Seu sucessor, al-Mansūr, deslocou a capital para um local novo, a cidade de Bagdá, no ano de 762. Mais do que simplesmente fundar uma capital, a mudança significava um novo rumo no islã. Segundo o historiador Richard Fletcher,

Em Damasco, os califas haviam tomado uma cidade já antiga, não muito distante da costa do Mediterrâneo. Guardiões de uma herança que não podiam adotar, eles controlaram um Estado-sucessor composto de fragmentos desordenados de dois grandes impérios do fim da Antiguidade, agora administrados para o benefício dos conquistadores árabes. Bagdá era diferente. Ficava onde hoje é o Iraque, e o deslocamento do Mediterrâneo para a Mesopotâmia, algumas centenas de quilômetros para o leste, sinalizava novas orientações e horizontes. Bagdá foi projetada para ser uma cidade exclusivamente islâmica, que não carregava consigo sobras de religiões e tradições anteriores. (…) Bagdá declarou-se imbuída de um tipo diferente de legitimidade, anunciou um novo estilo de dominação dentro da umma islâmica. O poder dos califas, fortemente concentrado na família abácida, tornou-se autocrático (…). O próprio soberano tornou-se distante e inacessível, encoberto por uma tela protetora de rituais palacianos.[1]


Além da representação de poder e fé exclusivamente islâmicas em uma cidade que não tinha vestígios de outras culturas anteriores à islâmica, Bagdá também está estrategicamente situada entre uma grande rota de comércio.

E o que os árabes sabem fazer melhor? Sim, acertou quem respondeu “comércio”. Vamos dar uma olhada no mapa abaixo, assim nossa compreensão da importância de Bagdá fica ainda mais fácil.


Digamos que Bagdá fica mais ao “centro” do Oriente Médio. Diferente de Damasco (que fica na rota Europa — África) Bagdá passou a ser também parada obrigatória dos mercadores que iam e vinham da Índia e China, já naquela época duas regiões com um comércio digno de importância.

A administração da nova capital e as mudanças no tratamento dos convertidos que entravam para a umma (sociedade) islâmica

Imbuídos de administrar um império conquistado por mercadores, que antes eram nômades que vagavam pelo deserto da Arábia e que não tinham muita noção de unidade política ANTES da chegada de Maomé, os persas ficaram responsáveis por organizar a maioria da burocracia imperial, já que os árabes não tinham muita noção de administração pública.

Como já citado, eles sempre tiveram como principal atividade o comércio. E para facilitar as coisas, muitos destes persas eram recém-convertidos ao islã. Não nasceram muçulmanos, mas abraçaram a nova religião.

Mas diferente dos omíadas, os abácidas mudaram consideravelmente o tratamento dispensado aos convertidos. Durante a dinastia omíada o poder, status e a riqueza eram mantidos como um monopólio das elites árabes muçulmanas. Havia junto aos povos conquistados um incentivo fiscal para aquele que aceitava o islã e entrava para a umma islâmica, mas o convertido precisava ser adotado por um clã, e era chamado de mawlā, ou “dependente”.

Os omíadas consideravam este mawlā um cidadão de segunda classe, e era comum que o mawlā sofresse discriminação financeira, por exemplo, pagando mais impostos ou um preço maior por um determinado produto.

Estes mawāli, descontentes, apoiaram os abácidas e receberam o que reivindicavam após a tomada do poder pela nova dinastia: igualdade em uma sociedade definida pela religião e pela cultura, e não mais por critérios étnicos.

A manutenção da unidade islâmica: Bagdá, o centro cultural

Como manter a unidade agregando tantos povos diferentes, não forçando-os à conversão — os muçulmanos respeitavam o culto dos povos conquistados, se estes povos resolvessem mante-lo — e ainda assim expandir sua cultura? Simples: o idioma! O árabe era a língua oficial do governo, do comércio e da religião, e em pouco tempo tornou-se um idioma erudito, tamanha a quantidade de conhecimento absorvido e difundido pelos muçulmanos.


Bagdá passou a receber estudiosos de vários pontos do planeta. Romanos orientais, indianos, chineses, egípcios, gregos e os já citados persas dividiram conhecimento com os muçulmanos.

As ideias de Aristóteles e de outros pensadores da antiguidade foram traduzidas para o árabe.

Astronomia, medicina, matemática e outros campos do conhecimento humano na época receberam contribuições dos estudiosos árabes.

Perto dos europeus que viviam sob a autoridade católica romana — impossível não comparar, desculpem —, o muçulmano “comum” tinha à sua disposição muito mais conhecimento. O índice de analfabetismo era baixíssimo. Já na Europa, a “leitura” e a “escrita” estava reservadas aos monges e alguns nobres que tinham interesse em aprender. E só.

Mas estas características são normais aos povos que convivem com o comércio forte. Os árabes estavam em vários lugares, tendo contato com diversas culturas, levando e agregando costumes de acordo com a conveniência. Não é de se espantar que hoje esta cultura esteja espalhada pelo mundo inteiro.

Assim, sem precisar guerrear na maioria das vezes, os árabes fortaleciam a jihad e espalhavam a palavra de Alah pelo mundo afora.

Fonte:

[1] FLETCHER, Richard. "A cruz e o crescente: cristianismo e islã, de Maomé à Reforma"; Editora Nova Fronteira, 2003.

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