A África antes dos europeus


Falar da história do continente africano é, em parte, fácil. A África é o berço da raça humana e foi lá que nasceu um das civilizações mais estudadas na Antiguidade, a egípcia. Mas e o restante do continente? Por que ele não desperta tanta curiosidade quanto o povo que viveu às margens do rio Nilo?

A impressão que ficava quando nós estudávamos (“nós” quer dizer os indivíduos que nasceram antes e durante a década de 1980, ok?) é que só o Egito desenvolveu, em todo o continente africano, uma civilização digna de nota, o que não é verdade.



Mas a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tornou obrigatório o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira nas escolas do país.

Desde então muitos professores tiveram que entrar em contato com a História da África sub-saariana, toda aquela parte do continente africano que fica logo abaixo do deserto do Saara, e que também teve um considerável desenvolvimento até a chegada dos europeus, nos séculos XV e XVI.

Antes da lei, muitos professores não estavam preparados para levar o assunto à sala de aula.

O mais engraçado de tudo é que parte desta cultura africana e desta história está no Brasil. Esta cultura faz parte do nosso país e ajudou a formar uma parcela considerável de nossa sociedade, pois desta região do continente africano saíram milhões de escravos que trabalharam nas lavouras do nosso lado do oceano, e seus descendentes ajudaram a construir o Brasil como nós conhecemos.

E é sobre estes povos que nós vamos falar um pouquinho neste texto.

Mais do que apenas “o berço do Homem”

Densas florestas, savanas ricas em vida animal, litoral farto, e ao leste grandes montanhas e lagos. Os primeiros homens que não migraram do continente africano para outros lugares do mundo viveram milênios isolados pelo mar e pelo deserto, e desenvolveram sociedades tão avançadas quanto a sociedade egípcia.

Mas isolados é um modo de dizer, já que entre todos os povos africanos existia um farto e dinâmico comércio. Ouro extraído da região de Gana chegava aos egípcios através da Núbia. Peles de animais exóticos caçados nas florestas africanas eram vendidas na Ásia Menor.

Os bérberes do Saara comercializavam com os árabes e europeus nas costas do Mediterrâneo o marfim retirado dos elefantes das savanas. O ferro, introduzido no Egito pelos assírios por volta de 500 a.C., era fundido no interior da África em 100 d.C. com um processo semelhante ao que os europeus só utilizariam no início da Idade Moderna.

Aqui, um parênteses rápido: os europeus já fundiam o ferro há muito tempo. Mas os processos eram diferentes e na África, principalmente entre os Haya (povo de fala Banto e que viviam próximo ao Lago Vitória, onde hoje é a Tanzânia) os fornos chegavam a atingir temperaturas que variavam entre 200°C e 400°C a mais que os fornos europeus. Por isso, a fundição africana era bem mais eficiente e os fornos europeus só conseguiriam chegar nestas temperaturas no século XIX.

O isolamento destes povos africanos era social. Por não sofrerem interferência direta de nenhum povo asiático ou europeu, com o tempo muitas das tribos chegaram a níveis de organização que causaram espanto nos primeiros europeus que mergulharam no interior da África.



Organização política e social

Gravura representando nativos do povo Yam


Reinos como Songhai, Yam, Kerma, Napata, Ashanti, Abomey, Oyo e Mossi tinham um Estado altamente organizado, com instituições complexas como um conselho de anciãos, que definia e controlava o poder exercido pelo governante da tribo — bem semelhante ao Senado Romano — e um sistema administrativo e burocrático que era muito parecido com os sistemas de outras partes do mundo.

Muitos dos reinos eram cidades-estados que tinham suas áreas de influência, chegando a controlar diversas outras tribos. Mas as disputas dificilmente chegavam às vias de fato, à guerra, pois os líderes africanos com o passar dos séculos desenvolveram um sistema exogâmico — quando não há casamento entre parentes próximos — , o que acabava tornando os líderes das diversas tribos parentes uns dos outros.

Quando havia uma disputa, ela era resolvida pela força organizada — apenas como agente punitivo, não como motivo para expansão territorial — ou pelo diálogo. Neste caso a resolução ficava nas mãos de um conselho de sábios formados por membros das tribos envolvidas. Mas por que este costume? Na verdade, os líderes não desejavam combater os parentes, apenas resolver o problema da melhor maneira possível, sem mortes.

Ainda sobre a organização social e o sistema exogâmico, o historiador Michael Hamenoo diz:

"As estruturas políticas africanas indígenas, organizadas da base para cima, giram em torno das instituições sagradas da família, de onde ramificam para o clã, a linhagem e o grupo de descendência. Através das convenções de exogamia, testadas durante milênios, os casamentos são contratados fora da linhagem, o que significa dizer que um grupo de descendência, casando, vai pertencer a outro grupo mais distante, assim ligando os grupos vizinhos numa série de alianças com uma consciência comum de identidade cultural. Esses grupos se unem para autodefender-se, quando ameaçados por um grupo estrangeiro inimigo. A autoridade, tanto temporal como espiritual, às vezes diferenciada, pertence ao homem genealogicamente precedente dentro do clã." [1]

Quando alguém erroneamente defende os europeus do processo escravista ocorrido entre os séculos XV e XVIII dizendo que “os africanos escravizavam os inimigos, que eram os próprios africanos de outras tribos!”, ele está cometendo dois erros: o primeiro é defender ou tentar justificar a escravidão, e o segundo é desconhecer o tipo de escravidão que ocorria dentro do continente africano entre as tribos que porventura guerreavam.

Ela existiu entre as tribos africanas? Sim, não podemos negar. Mas era uma escravidão bem diferente da praticada no Brasil. Os negros capturados e levados para a tribo vencedora tinham que trabalhar e lutar pela tribo, mas também tinham direitos, podendo até casar com um membro da tribo vencedora. Não havia a agressão gratuita observada no Brasil, muito menos a falta dos direitos sociais pertencentes aos outros membros da tribo.

A Religião africana


Os africanos tinham uma noção de deus único, maior, criador, distante do homem, assim como no cristianismo ou no islamismo.

Os desígnios de deus estavam fora de seu controle e de sua compreensão, e em cada grupo étnico o deus-maior recebia um nome diferente: para os Yoruba, por exemplo, era Olorum. Os Ewe chamavam-no de Mawu. Os Ashanti, de Onyankopoa [2].

Os africanos cultuavam as forças da natureza e davam a elas personalidades humanas.

Assim como Iansã, Ogum ou Oxossi, outros deuses faziam parte da religião africana. Cada culto, em cada região o grupo étnico que ali vivia tinha suas particularidades, mas de um modo geral podemos dizer que a religião dos povos sub-saarianos era bem parecida com a dos povos antigos, adoradores da natureza e de seus fenômenos naturais.

Para que o texto não fique tão grande, prometo que volto ao assunto em outra oportunidade. Na verdade, há muito que ser contado sobre a História da África, e não dá para colocar isso tudo em um só texto. Com o tempo, vamos construindo um painel com outros posts… esse foi apenas para dar uma pequena introdução ao tema, ok?

Fontes

[1] NASCIMENTO, Elisa (org.): Sankofa: resgate da cultura afro-brasileira. volume 1. Rio de Janeiro, 1994, p. 83 e 84.
[2] Idem, p. 84.
- Sobre a fundição do ferro (e outras informações), leiam o texto da professora Érica Turci e o texto do professor Lázaro Cunha sobre o assunto. Recomendo os dois com igual entusiasmo.
- Links verificados pela última vez em 21/11/2019.

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